domingo, 5 de junho de 2022

A desobediência civil. Henry David Thoreau.

A desobediência civil

Henry David Thoreau. Tradução de Sérgio Karam, Porto Alegre, Editora L&PM Pocket, 2002.


O melhor governo é o que governa menos”, aprimorada da seguinte expressão: “O melhor governo é o que absolutamente não governa” 1 iniciam uma das maiores obras literárias políticas da história de crítica ao autoritarismo do Estado. “Desobediência Civil” é considerada para alguns a bíblia dos anarquistas. Porém, como sabemos, os anarquistas não possuem bíblias e nem “Cristos”, o que nos faz entender também que em algumas passagens a crítica do autor mais se parece com o que nos Estados Unidos se chama por programas minimalistas, ou seja, daqueles que defendem a menor intervenção possível do Estado na Economia. Para os atuais anarco-capitalistas, nosso autor deve realmente ser uma bíblia. Mas não é somente a tais homens que a obra influência. Gandhi e tantas outras lideranças de militância pacifista se espelham no norte americano que foi preso por se recusar a pagar por seus impostos, mesmo tendo sido avisado diversas vezes de que isso iria acontecer.


Thoreau tem sua importância na luta contra o Estado. Ele faz durante boa parte da obra, uma crítica ao militarismo, a escravidão (até então vigente nos EUA), contra a existência do Estado e da autoridade constituída, entre outros. Thoreau também é contra a invasão e tomada do território Mexicano por parte do Exército dos EUA e mostra que isso deve custar o que for necessário ao seu país:


Este povo deve deixar de ter escravos e de fazer guerras ao México, mesmo que isso lhe custe sua existência como povo”.2


Um pouco anterior:


As objeções levantadas contra a existência de um exército permanente – e elas são muitas e fortes e merecem prevalecer – podem afinal ser levantadas também contra a existência de um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente.” 3


Na página seguinte ele dá uma explicação que de certa forma nos faz pensar sobre o porque da existência dos governos.


Pois o governo é uma conveniência pelo qual os homens conseguem, de bom grado, deixar-se em paz uns aos outros, e, como já se disse, quanto mais conveniente ele for, tanto mais deixará em paz seus governados.” 4


Pra que pensar se pensam por nós? Pra que pensar se governam por nós mesmos? E não é por isso que elegemos os políticos? Para não pensarmos? Thoreau não fala em fim dos governos (pelo menos em determinado momento). Não se assume anti governista. Mas clama por um governo melhor.


A grande maioria dos homens serve ao Estado desse modo, não como homens propriamente, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros da força civil, etc.” 5


Tal passagem nos lembra uma célebre frase de Chaplin: “Não sóis máquina! Homem é que sóis!” O Estado cria um exército de máquinas e não um exército de homens. Aparentemente, são seres que não valem mais do que cachorros ou cavalos, de acordo com a opinião do autor.


Percebe-se também influência que aparecerá em Stirner no futuro, já em nosso autor: “Aquele que se dá inteiramente a seus semelhantes parece-lhes inútil e egoísta; aquele, porém, que a eles se dá parcialmente é considerado um bem feitor e um filantropo.” 6 Também se percebe forte influência de John Locke em Thoreau quando o Britânico defende o “Direito de Resistência” aqui expresso como Direito de Revolução.


Todos os homens reconhecem o direito de revolução, isto é, o direito de recusar lealdade ao governo, e opor-lhe resistência, quando sua tirania e sua ineficiência tornam-se insuportáveis.” 7


Defende o fim da escravidão e diz claramente que se os negros não se unirem e esperarem dos brancos a sua libertação, jamais serão alforriados. Dá a entender a famosa frase de fundação da Internacional: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Esta luta contra a escravidão está presente em toda obra.


Mostra que existe diferença de tratamento por parte do Estado entre ricos e pobres, dando claramente a entender que o Estado serve aos primeiros e explora os segundos. Defende claramente que burlemos a Lei caso a mesma nos obrigue a praticar injustiças:


Se um homem sem propriedade se recusa pela primeira vez a recolher nove xelins aos cofres do Estado, é preso por prazo cujo limite não é estabelecido por qualquer lei que eu conheça; esse prazo é determinado exclusivamente pelo arbítrio dos que o enviam à prisão. Mas se ele resolver roubar noventa vezes nove xelins do Estado, em breve estará novamente em liberdade.” 8


Continua:


Mas se ela for de natureza tal que exija que nos tornemos agentes de injustiça para com os outros, então propomos que violemos a lei.” 9


Pouco adiante, mas na mesma página ele sentencia: O mal está na própria existência ou na própria constituição do Estado.


Pouco depois defende Cristo como um anarquista que se opõe ao Estado e por isso fora morto.


Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. "Mostrem-me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: "Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. “Portanto, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.” 10


Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por

causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados.” 11


Somos todos presos, escravo do Estado:


Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres

quanto eu.” 12


Quem é criminoso? Quem está dentro ou fora das prisões? Onde está o perigo senão nas idéias? Não há como trancafiá-las.


Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões - que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de facto contido nelas.” 13


E então, abriu-se caminho para a vista. A névoa dissipa-se e conseguimos enxergar os olhos do Estado:


Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.” 14


Pouco adiante Thoreau nos conta a respeito de suas lembranças na prisão e continua sua mordaz crítica ao Estado.


Na verdade, eu silenciosamente declaro guerra ao Estado, à minha moda, embora continue a usá-lo e a tirar vantagem dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situações.15


Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente.16


Thoreau finaliza a obra dizendo que nunca encontrou um Estado perfeito, por mais que procurasse bastante para localizá-lo. Sinal de que o Estado perfeito não existe e jamais existirá.


Leituras – extraído da obra Walden:


Esta tradução de “Desobediência civil” pela Editora L&PM, Coleção Pocket, também traz trechos da obra “Walden” de Thoreau ao término. É uma crítica do autor a ausência de projetos educacionais e culturais nos EUA e da importância do ato de ler, estudar, se informar para construir um país melhor.


O autor também nos fala da importância dos livros e de que estes são o maior patrimônio de uma sociedade e a melhor forma de se transmitir os conhecimentos da mesma. Faz uma forte crítica a sociedade estado-unidense chamando a de imbecil e de responsável pela formação de homens medíocres. Finaliza dizendo que não adianta todo o investimento em infraestrutura se não se pensar na educação dos jovens e adultos e a criação de uma nação de letrados. Este seria para Thoreau um passo para a construção de uma sociedade mais justa.


A importância desta última obra acoplada a primeira é de extrema importância pois reflete a esperança de uma sociedade liberta e justa nos EUA. Apesar de se demonstrar pessimista em algumas ocasiões, talvez pela amargura da prisão, este trecho de “Walden” nos traz a esperança de um país melhor.

1 Op. Cit. Pg. 5.

2 Pg. 15.

3 Pg. 6.

4 Pg. 7.

5 Pg. 10.

6 Pg. 12.

7 Pg. 12.

8 Pg. 24.

9 Pg. 25.

10 Pg. 32.

11 Pg. 36.

12 Pg. 36.

13 Pg. 37.

14 Pg. 37.

15 Pg. 45.

16 Pg. 55.