quarta-feira, 19 de abril de 2023

Libertando a vida: a revolução das mulheres, Ocalan, Abdullah, 2016.

 

Libertando a vida: a revolução das mulheres, Ocalan, Abdullah, 2016.1


Retiro aqui pequenos trechos da obra do líder dos Curdos tratando da história das mulheres na região da antiga Mesopotâmia. Por volta de três mil anos antes de Cristo, comunidades diversas viviam em sistema de matriarcado, em paz, sem guerras, livres, sem propriedade, sem Estado, sem intervenção da religião na política nos assuntos do dia a dia.


Aos poucos, o poder dos homens foi se associando com o poder dos antigos xamãs e dos líderes guerreiros, homens desejosos de poder que queriam o poder para si. As mulheres naquele momento eram ouvidas e tinham o poder de mãe, de curandeiras, de parteiras, de guerreiras, tinham o poder do conhecimento da agricultura e da domesticação dos animais também. Nosso autor chega a afirmar que é obra dessas sociedades matriarcais, entre elas, os antepassados dos Curdos, Sumérios e outros povos, de que a revolução agrícola, a formação das primeiras sociedades, a sedentarização do homem, o domínio das técnicas de domesticação dos animais, entre muitas outras, obra das mulheres.


Porém, a ganância dos homens foi aos poucos corroendo esse poder das mulheres. Se aproveitando da força, das técnicas de caça, do convencimento dos protosacerdotes (xamãs), começaram a usá-las contra as mulheres, minando aos poucos seu poder. Aos poucos novos mitos, lendas, estórias, religiões, foram sendo adaptados, incorporados ao imaginário daquelas sociedades retirando a poder da mãe, da mulher, da cuidadora, da guerreira, da caçadora e limitando seu papel aos problemas da casa.


Portanto, a origem de nossos graves problemas sociais se encontra nas sociedades patriarcais, que se converteram em sociedades de culto, quer dizer, religiosas, em torno do homem forte. Com a escravidão da mulher, o terreno estava fértil para a escravidão não só dos meninos, mas também dos homens” 2


A escravidão da mulher se tornou o caminho para poder escravizar as crianças, outros povos, o diferente. O acúmulo de excedentes se tornou base para a construção da propriedade privada. O mal estava plantado.


Em uma organização como essa, na qual o homem era o proprietário dos filhos, o pai queria ter tantos filhos quanto possível (em especial, meninos) para alcançar o poder. O domínio dos meninos lhe permitiu aproveitar a acumulação de mulher-mãe: o sistema de propriedade foi criado. Próxima à propriedade coletiva do estado clerical, a propriedade privada da dinastia foi estabelecida. A propriedade privada também exigiu o estabelecimento dos direitos de paternidade: requeria-se que a herança pudesse passar (principalmente) aos rapazes.” 3


A propriedade foi criada para dar mais poder aos homens e foi resultado da escravização das mulheres inicialmente, pois este trabalho delas é que permitiu ao homem criar o excedente. E é assim até os dias de hoje: para os homens enriquecerem, precisam que as mulheres sejam suas escravas do lar.


Essa ruptura sexual foi tão radical que resultou na mudança mais significativa já vista na história. A essa transformação quanto ao valor das mulheres na cultura do Oriente Médio podemos chamar a primeira ruptura maior ou contrarrevolução sexual. Denomino-a contrarrevolução porque não contribuiu em nada para o desenvolvimento positivo da sociedade. Pelo contrário, conduziu a uma extraordinária pobreza da vida para estabelecer a dominação total de um patriarcado rígido, provocando a exclusão das mulheres.” 4


Ocalan denomina esse processo de contrarevolução sexual. E seria a pior de todas as contrarevoluções da história, pois faria com que as mulheres e parte da humanidade virassem escravos dos homens e criasse no futuro distante o sistema mais perverso para a vida humana e ambiental na história do planeta e dos homens: o capitalismo e o Estado para protegê-lo.


Havia se dado a transição para uma cultura social unidimensional, extremamente masculina. A inteligência emocional da mulher, que criava maravilhas, era humana e estava comprometida com a natureza e a vida, se perdeu. Em seu lugar nasceu a maldita inteligência analítica de uma cultura cruel que havia se rendido ao dogmatismo e se separado da natureza; que considerava a guerra como a maior virtude e desfrutava do derramamento do sangue humano; que considerava legítimo o tratamento arbitrário da mulher e sua escravidão. Essa inteligência é oposta à inteligência igualitária da mulher, focada para a produção humanitária e para a natureza viva.” 5


A lógica autoritária, violenta, positivista das ciências se inicia distantemente, como diria o próprio Theodor Adorno. Para o filósofo Alemão, na antiga Grécia, nos contos e estórias dos antigos e em especial na literatura de Homero, em Ilíada, para ser mais específico, já constava essa lógica cega da busca dos homens por poder, por desumanizar o próximo, o diferente. A lógica de escravizar para enriquecer e produzir sempre o excedente, as fortunas e o poder sem fim dos homens, inseguros...


Essa união entre os xamãs e os guerreiros homens das tribos é que inicia o processo de hierarquização forçada e autoritária dentro das sociedades antigas. É uma hierarquia diferente das sociedades matriarcais, pois, antes, a obediência se devia pelo respeito, pelo conhecimento, pela experiência das mulheres e não somente pelo uso da força como começa a acontecer com os homens, quando chegam ao poder.


Portanto, para Ocalan, a inversão da ordem matriarcal pela patriarcal não foi um processo natural como podem muitas argumentar ou um processo que haveria de acontecer em algum momento da história humana. Foi um golpe, uma contrarevolução na história humana. Assim também o nascimento das classes sociais: um fato produzido propositalmente por homens que eram profundamente invejosos das mulheres, inseguros, raivosos, machistas e por fim, misóginos.


Após essa derrota, lacerações profundas ocorreram na sociedade comunitária das mulheres. O processo de se tornar uma sociedade hierárquica não foi fácil. É a fase de transição da sociedade comunitária primitiva para o Estado. Finalmente, a sociedade hierárquica tinha que se desintegrar ou tornar-se Estado.” 6


É a hierarquia violenta, forçada, cega dos homens quem cria o Estado. Aqui, provavelmente Pierre Clastres não discordaria de Ocalan.


Na verdade, foi a sociedade hierárquica e patriarcal que subordinou mulheres, jovens e membros de outros grupos étnicos; tudo isso foi feito antes do desenvolvimento do Estado.”7


Ou seja, o Estado nasce para dar prosseguimento ao modelo de exploração da nova sociedade patriarcal, baseado na multiplicação do excedente, propriedade privada, no poder religioso (agora politeísta e machista) e no poder das armas, o Estado.


A mulher não é perseguida como gênero feminino, mas como fundadora da sociedade matriarcal.”8


A sociedade comunitária é contrária a sociedade estatutária. Comunidade vive em paz, harmonia, hierarquia baseada no saber e na experiência e não na violência e na força como as sociedades Estatais assim impõem. A mulher precisa resgatar a vida em comunidade para que as sociedades matriarcais voltem a florescer. Essa deve ser a função do povo Curdo e de todo revolucionário em todo o mundo, segundo Abdullah Ocalan. Sem a emancipação feminina, nenhuma outra emanicipação será concretizada. E a libertação das mulheres só ocorrerá com o fim do Estado e do sistema capitalista e assim, também, com o fim do sistema patriarcal.


A discriminação de gênero teve duplo impacto destrutivo sobre a sociedade. Primeiro, abriu as portas da sociedade à escravidão. Em segundo lugar, todas as outras formas de escravidão foram implementadas com base na conversão da dona de casa. A conversão em dona de casa não só tem como objetivo recriar um indivíduo como um objeto sexual, o que não é o resultado de uma característica biológica.” 9


A primeira das escravidões permitiu que todo outro tipo de escravidão ocorresse. A busca por poder, força, excedentes, terras, propriedades diversas, abriu o caminho para que mulheres, crianças, idosos, outros povos, outras etnias também fossem escravizados. Nos nossos dias, esse processo de escravidão é mais requintado para as mulheres: a figura do amor e do romantismo serviram para ocultar o caráter exploratório do trabalho do lar.


E ele continua o raciocínio:


Para que o sistema funcione, toda a sociedade deve ser submetida à conversão em dona de casa. O poder é sinônimo de masculinidade. Assim, a sujeição da sociedade à conversão em dona de casa é inevitável, porque o poder não reconhece os princípios da liberdade e da igualdade. Se o fizesse, não poderia existir. O poder e o sexismo na sociedade compartilham a mesma essência.”10


Enquanto existirem mulheres que são donas do lar, a escravidão das mulheres prossegue! E para que essa escravidão acabe, o homem precisa deixar de se apegar as tarefas do poder, do consumo desenfreado e sem sentido dessa vida lesada na modernidade capitalista. A negação do trabalho escravo das donas do lar, coloca em risco a própria existência do sistema capitalista de exploração e escravidão.


Sem entender como se formou socialmente a masculinidade, não se pode analisar a instituição do Estado e, portanto, definir com precisão a cultura da guerra e do poder relacionado à categoria de Estado. Saliento esse problema porque é preciso expor as personalidades divinizadas e macabras que se desenvolveram como resultado de todas as divisões de classe subsequentes, e todos os tipos de exploração e de assassinato que cometeram. A subordinação social das mulheres foi a contrarrevolução mais vil já realizada.” 11


Para nosso autor, a segunda ruptura com as mulheres se deu no espaço religioso também, quando o politeísmo deu lugar ao monoteísmo, quando a poligamia, torna-se exclusivamente privilégio dos homens, quando o poder religioso elege o homem como centro das religiões e futuramente como centro da Filosofia, da Ciência e da arte no Ocidente e no Oriente também. Até no papel santo das religiões o homem foi alçado a figura de ser especial, enquanto a mulher foi condenada a figura de inferior, escrava, pecadora.


O papel da família também é muito importante para nosso autor. Ele tem consciência crítica de que a família foi uma instituição aprisionada pelo machismo e depois pelo feudalismo e o capitalismo também. Ela é hoje base dessa exploração sobre a mulher, sobre as minorias e o restante da sociedade. Devemos libertar a família para que ela se torne a base da futura sociedade democrática. Nossas ações devem começar desde já, acabando inicialmente com o trabalho exclusivamente da mulher no lar. Mulher do lar é escrava e devemos acabar com isso. Esse é um dos primeiros passos para que a mulher inicie sua libertação e para que a exploração também acabe.


O objetivo final de sua guerra ideológica é garantir seu monopólio sobre o pensamento. Suas principais armas são a religiosidade, a discriminação de gênero e a ciência como religião posi-

tivista. Sem hegemonia ideológica, apenas com a política e a repressão militar, a manutenção da modernidade será impossível.”12


A crítica ao positivismo como religião dos poderosos, ao utilizarem a Ciência para uso da manutenção de seu domínio é evidente para nosso autor. A discriminação de gênero mantém as mulheres sob a escravidão do lar. As religiões, todas elas sem exceção, mantém a escravização sentimental e ideológica. O uso do cientificismo que se transforma em Positivismo para dominar as Ciências é o uso da razão para sedimentar o discurso do poder e de sua inevitabilidade. Somente com a força das armas seria impossível vencer.


Quando o capitalismo viu a oportunidade de se converter em um sistema, começou por eliminar todas as sociedades fundadas na cultura da mãe-mulher. Durante a primeira modernidade, a força da sociabilidade feminina que lutava por subsistir foi queimada na fogueira do caçador de bruxas.”13


As herdeiras do conhecimento milenar das mulheres, vindas de várias sociedades, aos poucos, ao menos na Europa, foram sendo condenadas à fogueira. Essa foi uma das formas de manter o monopólio do saber nas mãos da igreja, dos homens e da classe dominante daquela época. Foi a chance que o capitalismo teve de se implantar como sistema.


O medo interiorizado à fogueira colocou-a na Europa sob total servidão ao homem. Depois de eliminar as mulheres, o sistema destruiu de forma desumana a sociedade agrária e a da vila. Enquanto existisse uma sociedade democrática e comunitária, o capitalismo não poderia obter o máximo poder e benefícios. Portanto, esse tipo de sociabilidade foi inevitavelmente aniquilado. Assim, a subjugação total da escrava mais antiga, a mulher, converteu-se no modelo para as outras vidas escravizadas: as dos filhos e as dos homens.”14


Conjuntamente ao extermínio das sábias bruxas, o extermínio de formas de convivência humana diferentes do padrão da religiosidade e da autoridade patriarcal, foram se tornando regra na Europa e no Oriente Médio também. Esse novo modo de vida machista, violento, baseado na propriedade, monoteísta, destruiu as formas de vida mais humanas do passado e trouxe consigo a colonização e o extermínio de povos e minorias nos dias de hoje também.


Claro, matar o homem dominante é o princípio fundamental do socialismo. Isso é o que significa matar o poder: matar a dominação unilateral, a desigualdade e a intolerância. Além disso, é matar o fascismo, a ditadura e o despotismo. Deveríamos expandir esse conceito para incluir todos esses aspectos.” 15


Matar o patriarcalismo é essencial para que qualquer socialismo, comunismo e anarquismo dêem certo assim como a derrota final de todo fascismo. Derrotar esse homem dominante para nosso autor é também derrotar o Estado e o próprio sistema capitalista. É fundamental que todas as esquerdas do mundo entendam isso.


Sem igualdade de gênero, nenhuma exigência de liberdade e de igualdade faz sentido. Na verdade, a liberdade e a igualdade não são alcançadas se a igualdade de gênero não é atingida. O elemento mais permanente e completo de democratização é a liberdade das mulheres.”16


A liberdade e a igualdade entre homens e mulheres (e nisso também incluímos a comunidade LGBTQIA+) só acontecerá quando a liberdade de gênero também acontecer. Não adianta pensar em libertar o proletário sem a liberdade das mulheres de casa, das mulheres do lar, sejam elas trans ou não. Toda a liberdade da humanidade está associada a emancipação das primeiras escravas. Sem elas, jamais poderemos sonhar com a profunda e real emancipação de toda a humanidade.


Como a hierarquia e o estatismo não são facilmente compatíveis com a natureza feminina,

um movimento libertador das mulheres deveria se esforçar para alcançar formações políticas anti-hierárquicas e não estatais.”17


A própria natureza da organização social das mulheres, ou seja, o matriarcado, produziu uma sociedade livre da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem. Por isso a existência do Estado já é anti-natural, anti-feminina, pró-machista, autoritário e violento por natureza.


As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária.”18


As mulheres são a chave para a libertação da humanidade. Quando as mulheres se derem conta de que são escravas do lar ou escravas dos homens, farão a libertação de si e dos outros.


Eu acho que deveria ter prioridade sobre a libertação das pátrias e do trabalho. Se quiser ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a libertação das mulheres é uma revolução dentro da revolução."19


A libertação da mulher é o primeiro passo para a libertação de todas e todos. É a libertação que vai gerar outras liberdades em um efeito cascata ou em série. Não podem ocorrer mais outras escravizações em parte alguma do mundo se as mulheres se tornarem livres. É inconcebível que outros povos, etnias, gêneros, etc, possam ser escravizados se a mulher se libertar. É condição para a liberdade de todos que a mulher reaja e se livre das amarras de sua escravidão.

1Resenha do professor Fernando H. O. Monteiro.

2Pg 36.

3Pg. 38.

4Pg. 39.

5Pg. 39.

6Pg. 41.

7Pg. 41.

8Pg. 42.

9 Pg. 43 e 44.

10Pg. 44.

11Pg. 45.

12Pg. 59.

13Pg. 60.

14Pg. 60 e 61.

15Pg. 67.

16Pg. 68.

17Pg. 70.

18Pg. 74.

19Pg. 74.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Camus e o estrangeiro de nós mesmos...

 

O estrangeiro – Albert Camus:


Uma das grandes obras da Literatura mundial e do próprio escritor Argelino, Albert Camus. Leitura esta realizada sobre uma edição da Editora Abril de 1972. A obra é dividida em duas partes, a primeira apresentado o personagem principal da obra e sua vida acabando no assassinato de um inocente. A segunda parte se inicia na sua prisão, julgamento e nos trâmites do processo até sua morte.


O próprio livro começa com a perda completa da noção de tempo por parte do principal personagem, o Sr. Meursault. Ele diz que a mãe morreu hoje, mas em seguida se corrige não sabendo ao certo o dia do ocorrido. Quem em sã consciência não lembra a data recente da morte da mãe? Isso é egoísmo puro ou sinal do comportamento do homem na modernidade em relação ao tempo?


Nas páginas que se seguem, o narrador chega até o asilo onde hospedara sua mãe e lá vê sua velha cercada de outras velhas e velhos do asilo. Alguns choram e o filho desalmado demonstra irritação pelo choro alheio e pelas caras e presenças dos amigos de sua mãe. Tal como se a presença de todos lhe incomodasse. Depois, era o silêncio das pessoas que o incomodava. É difícil entender este indivíduo. Um sentimento de frieza ronda os sentimentos do Sr. Meursault. Quando, durante o enterro, lhe perguntavam quantos anos tinha sua mãe, ele não sabia ao certo dizer.


Ao término de todo o processo fúnebre, ele não via a hora de deixar o local e partir de volta para a sua cidade e sua vida. Foi ao enterro da própria mãe mais como uma obrigação legal do que como a despedida de uma pessoa querida. Fica claro quando ele estava mais preocupado em deitar e dormir no ônibus durante as doze horas de viagem de retorno. Isso também quer dizer que existe uma perda da experiência consigo, com os outros e com o mundo e a própria vida. Ele leva a vida de modo completamente isolado.


A segunda parte do livro começa com o retorno do nosso personagem a sua vida pacata e os resmungos do patrão pelo fato de seu empregado ter ganho alguns dias a mais de descanso pela morte da mãe. O que dá a entender é que o patrão sempre será invejoso, maldoso, é da sua personalidade querer o que é dos outros. A própria mais valia é uma prova da retirada, roubo, expropriação do resultado do trabalho alheio por parte do patrão. É pra isso que existe esta figura abominável na sociedade. E o personagem parece não pensar nada a respeito.


Adiante, observando as pessoas voltando do passeio de fim de semana, domingo, para suas casas, diz sobre o comportamento de um rapaz: “Entre eles, os rapazes de havia a pouco tinham gestos mais decididos do que de costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras.1 Ele até consegue perceber a mudança nos hábitos e no cotidiano das pessoas, mas se torna incapaz de ver que se trata de manipulação do que o Filósofo Adorno chamaria de “Indústria Cultural”, ou seja, que o jeito, a imaginação, toda a subjetividade do homem moderno, no capitalismo, estava marcada pelas regras que o capital impunha sobre o homem.


Esta segunda parte finaliza com o tédio do fim de domingo, para o personagem, de uma solidão e de um solteirão desejando manter a privacidade a todo custo, mesmo que se afastando das pessoas. Assim foi seu comportamento durante a semana posterior da morte de sua mãe em que ele se fechou para não dar explicações maiores sobre o falecimento. E a rotina e o cotidiano da “vida lesada” destruindo a própria vida.


No terceiro capítulo, se inicia com um pedido disfarçado de desculpas do patrão com o Sr. Meursault. Uma pequena pergunta, como se tivesse alguma curiosidade sobre a vida do empregado, disfarçando seu ódio e desprezo pelos operários e funcionários de sua empresa. Sinal de que o patrão é sempre hipócrita, só não vê quem não quer.


Nosso personagem relata a vida de um vizinho, Sr. Salamano, que sempre maltratava seu próprio cão. Não tinha a menor paciência com o animal. Várias vezes ao dia, gritava com o mesmo, agredia-o e assim passavam o tempo. A forma como Camus relata a semelhança de um e de outro, não dá para não lembrar de Kafka e “A Metamorfose”, quando o Sr. K se transforma num animal.


À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se.”2


A desumanidade do homem com o animal, demonstra o quanto o homem se tornou um outro animal, tão irracional quanto o primeiro, o agredido. Nisso, vemos a semelhança com a leitura de Kafka. Ambos parecem ter percebido muito bem, as características do homem na modernidade.


Ao término do terceiro capítulo, ele faz a amizade com um vizinho, marginal, chamado Raimundo, com passagem pela polícia, agressor de mulher, que arrumaria encrencas com parentes de sua ex-amante. São as brigas que este vizinho arrumará que o fará assassinar um destes e o levará a prisão. Ao comer na casa do novo amigo, ele acha que está aproveitando da situação para “filar uma bóia”, mas na verdade está começando a se enrolar com um cara cheio de problemas.


No quarto capítulo, aparece mais nitidamente a figura de Maria, uma ex colega de trabalho que se apaixona por nosso personagem e que o mesmo não liga a mínima, tratando-a como objeto constantemente. Maria diz que o ama e o Sr. Meursault não diz nada, nunca, sempre deixando a triste. Mesmo assim, ela quer se casar com ele.


Ao término deste quarto capítulo, dialogando com o Sr Salamano, eles se despedem:


Olhou para mim, em silêncio. Depois, disse: -Boas noites. - Fechou a porta e ouvi o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, pelo estranho barulho que chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei por que, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte precisava me lavantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar.”3


Ele lembrou da mãe, talvez a única e última companheira que ele, assim como o vizinho, não haviam dado o devido amor e respeito a seus companheiros. Um com o cão e o outro com a mãe. Ao mesmo tempo em que é frio com as pessoas, vê-se que o cotidiano lhe atropela a vida e lhe impede de pensar a respeito de si e dos seus sentimentos. São manifestações do homem na vida da modernidade. O impedimento do pensar, a vida que atropela, o filme, a TV que nos manda adiante sem pensar. Talvez esta seja a grande regra da vida nas sociedades capitalistas do século XX em diante: não vivemos para pensar, refletir, dialogar, existir, mas para consumir, tudo e a todos desesperadamente e desenfreadamente, o mais rápido possível que puder. De preferência, de modo instantâneo.


Essa passagem também serve para nos mostrar que o seu vizinho, o Sr. Salamano tinha dor na consciência ou a consciência pesada pelo mal e desprezo que havia feito ao seu cão. Já o Sr. Meursault não. Não tinha um pingo de arrependimento pelo que fizera ou pela vida fria e egoísta que levava. Nem uma lágrima pela mãe ele derramara depois da morte da mesma.


No capítulo V, o Sr. Meursault demonstra total apatia com a vida. Como se diz no ditado, “pra ele, tanto fez, como tanto faz”. Não havia como mudar de vida e todas as vidas se equivaliam, ou seja, talvez não valessem nada.4


É neste capítulo que Maria lhe pede em casamento: “Respondi que tanto me fazia, mas que de fato se ela queria casar, estava bem.5


Depois de uns instantes em silêncio, Maria murmurou que ele era uma pessoa estranha. E novamente, ele não disse nada.


Em novo diálogo com o vizinho, percebe-se tal estranheza ou seria frieza do Sr. Meursault em relação a mãe. Ele diz que encarava com naturalidade o envio da mãe ao asilo e argumentava se desculpando que não tinha como sustentar a velha ao seu lado. O vizinho, Sr. Salamano, se preocupa e se mostra triste pelo fim trágico da mãe. Meursault acha natural tal ato.


Foi o próprio narrador que colocou a mãe no asilo sem arrependimento e com a consciência tranquila de quem cumpriu o seu dever. Assim também agiram o alto e baixo clero nas forças armadas do nazi-fascismo ao exterminarem as minorias nos campos de concentração na II Guerra.


É no capítulo seis que o Sr. Meursault mata um dos Árabes por achar que este estivera armado e assim ele dispara quatro tiros que acabam com a vida de seu oponente. Termina aí a primeira parte da obra.


Nesta segunda parte, os investigadores querem mostrar que a personalidade do Sr. Meursault é de uma frieza imensa, tentando desde o princípio inputar-lhe a culpa pelo assassinato como algo natural de sua conduta e não algo trágico. Neste interrogatório, ele responde: “Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo e que era difícil dar-lhe uma resposta.6 Temos aqui um irmão gêmeo de Eichmann? Hannah Arendt diria que sim…


Este é um atestado de burrice ou de preguiça mental ou de alienação absoluta sobre si e sobre a vida. É a perda da capacidade de pensar por si mesmo. Kant nos diria que este é um caso clássico de indivíduo que perdeu completamente a autonomia e a capacidade de viver por si mesmo, não guiado pela razão.


Lá pelas tantas, em diálogo com o Juiz do caso, este lhe pergunta se ele acreditava em deus, e o réu responde que não, com uma prontidão que assusta o juiz. Percebe-se nessa hora a perda de todas as referências para este homem. Ele não tem ética, moral, religião, deus, nada que balize sua vida. Só restava a Lei para isso. Perda de todas as referências, isto é retrato do homem na Modernidade.


Adiante, outra demonstração de que ele se habituara a tudo, mesmo a maior das injustiças, estar preso. A acomodação é um passo para a alienação do corpo e da consciência. Mesmo durante o interrogatório, algumas perguntas que lhe eram feitas, mesmo que discordasse da indagação, ele aceitava ou acatava, simplesmente para sair daquela situação e voltar para sua cela. Eis um exemplo de alienação e acomodação.


Há um entendimento sobre a noção de tempo na modernidade que fica bem explícito nos nossos dias:


Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos, que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam sentido.7


Esta passagem mostra o quanto o tempo é dividido de modo tão artificial, em dias, horas, minutos, segundos, décimos, centésimos e milésimos de segundo que não fazem sentido algum para quem está fora dessa realidade louca que é a “vida lesada” no capitalismo. Os nomes dos dias perdiam o sentido pois esta vida excessivamente regrada não fazia sentido para quem tem o tempo praticamente livre (ou não). Isso nos mostra que a vida, se vivida de modo natural, fora da lógica do capital, não seria balizada por esses mecanismos tão frios de mensuração do tempo. A vida seria vivida, tempo após tempo e não cobrada no alucinado tempo do relógio e das máquinas com suas imposições sobre a vida do homem na sociedade do capital. Os tempos, seriam outros.


Logo adiante, também há uma passagem, que demonstra o quanto o homem nos nossos tempos, não se conhece mais ou não se reconhece mais. Quando olha no reflexo da bacia d'água, ele se estranha, tenta sorrir e não vê diferenças ou mudanças de sua face triste e severa. Ao mesmo tempo, ele, de repente, percebe estar falando sozinho, quando escuta o som da própria voz. Daí também percebe que a tempos falava só e que não distinguia mais o som que saia de sua boca. Percebe que se perdera de si ao não reconhecer mais a voz e a si mesmo. Outro diálogo com Kafka. Gregor também não se reconhece mais ao se olhar no espelho, apenas vê o animal que se tornou.


O estranhamento de si e do mundo, a perda da crença em deus ou em qualquer outra referência ética e moral nos nossos dias, nos torna seres descontentes, entediados com a vida. Desejosos do imediato, “do aqui e agora” e da ausência contínua de reflexão, nos tornamos os animais que os artistas continuamente tendem a nos alertar.


Adiante, Camus também faz do julgamento por que passa o Sr. Meursault, uma crítica ao Positivismo Jurídico. Demonstra de modo duro, o quão desumano é a justiça e seus procedimentos para chegar a um veredito sobre um determinado crime. Esta parte é bem criteriosa sobre a crueldade com que se tratam as pessoas que caem no sistema penitenciário e criminal. Em praticamente nenhum, ou quase nenhum momento, foi dada a palavra para o réu se defender. Pelo contrário, quanto mais distante das emoções, mais operava a razão. Dito de outra forma, quanto mais isento fosse o julgamento, mais preciso seria o resultado. Tal como numa conta de matemática, onde se calcula que dois mais dois seriam quatro e fim de argumentos. Este é o Direito, que se pretende como Ciência. Mais uma prova dos desmandos do positivismo nas diversas áreas do saber.


Dessa forma, a vida das pessoas se torna um viver sob o fio da navalha. Se errar, enfrentará a espada da (in)justiça ou a balança da deusa Temis, que de equilibrada e imparcial, não existe nada. Camus nos faz entrar na pele do Sr. Meursault: e se fosse eu ali? O que faria? Como reagiria? Como se sentiria? Seria capaz de matar um homem, diante do medo e do pavor de ser morto? A justiça seria capaz de entender esse lado do réu? Ele é culpado ou inocente? Cabem tantas perguntas aqui feitas pelo nosso autor. Mas a que mais me preocupa no final da história é: o Sr. Meursault é vítima ou vilão?


Durante seus devaneios na prisão, ele imagina que poderia estar lá fora, do lado contrário que está agora, não como prisioneiro mas como espectador do julgamento e da possível execução de um assassino. E ele vibra com a ideia. Sente subir pelo corpo um ódio imenso. Demonstra o autor para nós mesmos que é fácil desejar o mal para o outro sem se indispor ou se colocar no lugar do outro. É como se Camus estivesse nos dizendo que não só o protagonista, mas o ser humano é falso, não tem empatia, julga pelas aparências, é superficial na sua vida.


A coisa, o processo, inquérito, julgamento, sentença, etc, são feitos para dar a impressão de que são perfeitos. Mas os ritos são todos falhos. Justamente por que se pretendem exatos, infalíveis, como a matematização ou a objetivização do mundo. Camus está criticando o “maquinismo” que toma conta do mundo, inclusive da justiça em seus trâmites burocráticos. E é preciso que toda a encenação, todo o teatro funcione realmente para dar a impressão para a sociedade de que a ordem se manteve e que a justiça foi feita. Todos devem participar e colaborar com os rituais macabros da justiça. Porém, para nosso personagem, trata-se de injustiça e não justiça.


Novamente, o protagonista irá criticar o “maquinismo” que esmaga seus sonhos e a subjetividade alheia. Critica forte ao homem e a forma como a vida é conduzida no século XX. Tudo depende da máquina ou é feito de acordo com as ordens da mesma. E podemos entender a “máquina”, não apenas como a guilhotina que ele reclama, mas a todo o sistema que aprisiona e oprime o homem.


Adiante ele volta a se revoltar com a forma como a vida é levada. Afirma que não há valor na vida. “Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida.8” Parece haver um sentimento de desprezo total pela vida humana, pela sobrevivência, pela própria raça humana. Como se houvesse uma obrigação de pertencer a este grupo de animais. Ele continua a agir de modo acomodado e alienado. Perdeu o amor pela própria vida.


Pouco depois, num diálogo que o protagonista começa a ter com o capelão, este lhe diz que todos nós somos condenados a morte, no intuito de confortar ou de abrir uma conversa com o Sr. Meursault que tanto ignorava o religioso. O condenado discorda, dizendo que não era a mesma coisa. Mas fica uma dúvida sobre o propósito do autor na obra: a existência humana é uma condenação a morte? Viver esta vida é o mesmo que já estar condenado? Não é o mesmo que já estar morto? A impressão que se tem é a de que o personagem concordaria com tal hipótese.


O capelão pergunta então ao criminoso se ele conseguiria viver de modo tão duro, não confessando, deixando de acreditar em deus ou na vida após a morte e sem esperança. Ao que o protagonista responde afirmando que sim, como se fosse algo natural das pessoas a descrença em deus ou, como dizem muitos, “em uma força maior” neste momento da condenação, próximo da hora da morte. Percebe-se nesse caso que o capelão, assim como provavelmente todo religioso, é um fraco, ao ponto de não conseguir enfrentar a realidade e a verdade. Por isso a crença em deus ou numa vida após a morte. Trata-se sempre de conforto para o condenado ou de tentar se enganar ou ser enganado. Algo que o Sr. Meursault discorda.


Ele afirma que a certeza do religioso sobre as religiões, das almas, espíritos, anjos, deus, da vida após a morte, eram vazias de sentido e sem fundamento. Parecia que o capelão já estava morto em vida. Portanto, diante dessas desconfianças, que moral tinha um padre nessa situação? Que experiência tinha de vida um sujeito desse para afirmar com tamanha verdade tais absurdos? E a resposta de nosso personagem é a de que ele só podia provar a sua própria existência, pois pensava, logo deduzia que existia também.


E, em um momento de fúria, o condenado agarra o capelão pelo colarinho e lhe dá uma lição de vida, lhe indagando onde estaria a justiça ao condená-lo a morte? Onde estaria a justiça quando não podemos mudar nossos próprios destinos? Por que ele teria sindo condenado e não outra pessoa? Dramas e sentimentos humanos de injustiça tremenda que faziam o capelão se calar diante das maldades. Para o Sr. Meursault, todos morreremos algum dia, mas é certo esta condenação prévia a esta vida? Está certo ser condenado a viver de modo tão desumano esta triste e morta vida? Onde está a razão de se viver?


Ao término, fica a impressão de que o protagonista aceita novas experiências com a vida. Se abre pro mundo. Entende como ele e as pessoas são. Ou se engana a respeito disso. Ou ainda, pode estar sendo cínico ou sarcástico a respeito. Quando diz que entende o esforço da mãe por recomeçar uma nova relação na velhice, compara esta situação a aceitação de que a morte é inevitável e que ele está pronto a reviver tudo novamente.


Por outro lado, quando ele diz que se abre a “doce indiferença do mundo9, ele está dizendo que o homem não se importa mais uns com os outros, tal como ele. E assim o diz quando se sente parecido com o mundo. Um é reflexo do outro. O homem que se desumaniza é o mundo desumanizado. Mas logo em seguida se engana ou quer enganar (ou está sendo cínico) ao dizer que o mundo era fraternal, assim como ele e que sempre fora feliz e que mesmo naquela situação ainda o era. Mentira? Loucura? Desilusão? Depressão? Cinismo? O que ele quer dizer? Ou se trata de alienação mesmo e desconhecimento de si e dos seus sentimentos?


Este comportamento ao término da obra quer nos mostrar o quanto o cinismo ou a tristeza estão arraigados ao comportamento do homem em nossos tempos. Também parece querer nos mostrar que o homem se odeia. Quando deseja que hajam muitos espectadores na hora da execução e que estes vibrem com sua morte recebendo-o com gritos de ódio, ele demonstra o quão falsa e vazia são as relações entre os homens hoje, como em seu tempo. Deseja também provocar a fúria das pessoas com a desculpa de que se sentiria menos só. Pois provavelmente assim estaria acompanhado. Mas suas ações na prisão, ao lado do padre, durante o julgamento, dizem o contrário, “antes só do que mal acompanhado”.


Sentimentos registrados durante e depois da leitura:


Existe um diálogo forte entre Kafka e o autor. A tensão existente antes da morte, na prisão, durante o julgamento. Há uma confusão também em tentar entender o Sr. Meursault. Por um lado ele parece vítima do sistema penal, jurídico, econômico, mas por outro, ele parece tão alienado, tão artificial, egoísta, mesquinho, tão frio e duro com os outros, tão interesseiro, que não dá para olhar para o personagem apenas com os olhos de vítima. Ele em alguns momentos também é vilão.


Ele demonstra completa alienação em relação a si mesmo, aos seus sentimentos, anseios, desejos, até mesmo diante de sua intimidade, nada importa, o que tiver, está bom, não tem problema. Ele parece derrotado moralmente, intelectualmente e psiquicamente. Não conhece política, não lê os jornais, nem livros, nada. Não tem uma vida cultural e nem se esforça para tê-la. É um perdido no mundo. Isto fica registrado em comportamentos nítidos durante vários trechos do livro.


Na morte de sua mãe, o que deu a entender, e que ele não via a hora de sair daquele fim de mundo para voltar a sua rotina besta, ao trabalho e a sua vidinha medíocre. Ele não se alimenta nada bem. Pode ser pelo fato de ser proletário, mas também por desleixo. Aliás, isso fica claro na forma como se veste, vive, dorme, nos seus hábitos em fumar, comer mal, quando come, entre outros.


Podemos dizer que o Sr. Meursault também é o que se costuma chamar de “maria vai com as outras”. Foi preso e perdeu a vida para acompanhar dois valentões malandros que pouco se importavam com ele. Já dizia outro ditado, “papagaio que acompanha morcego acorda de ponta cabeça” ou “passarinho que come pedra, sabe o fiofó que tem”. Não existe como não desconfiar das ações que se toma. “Quando se planta vento, colhe-se tempestade”, já dizia também outro ditado. Ele nunca se preocupou consigo mesmo e por isso acabou dessa forma.


Considerações finais:


Acredito que a ideia de estrangeiro, nome dado ao título do livro, esteja associada diretamente ao protagonista. Mas nos fundo, é um retrato de nós mesmos. Camus, fala de si, do personagem, mas de nós também.


Um estrangeiro não é daqui. Não é deste lugar. É uma pessoa estranha. Com hábitos diferentes, um jeito de ser e estar diferente do das outras pessoas no mundo ou ao seu redor. É uma pessoa de outro mundo. Como alguém pode ser tão indiferente com os outros e consigo mesmo? É possível uma pessoa assim? Isto é um ser humano ou um ET? É possível alguém ser tão frio desse modo? E tão alienado de si e dos seus sentimentos e consciência de mundo? De onde veio esta pessoa? Talvez sejam perguntas que Camus queira nos fazer a respeito do protagonista, provavelmente provocando a nós mesmos. Será que não somos como o Sr. Meursault? Até que ponto não nos assemelhamos ao mesmo? Será que ele é mesmo um estrangeiro ou um diferente ou tão distante assim de nós mesmos ao ponto de nos chocarmos com seu ato macabro de matar um homem? Seríamos capazes de fazer o mesmo? Por que não? No fundo, somos ou não somos tão indiferentes e frios uns com os outros no nosso cotidiano? Tal como o protagonista.


Então, a ideia (ou o título da obra) de um estrangeiro, é como uma provocação. É uma metáfora de nós mesmos. Não existe coisa alguma de estrangeiro. Ele nos parece estranho, mas é por que não olhamos para as profundezas de nosso ser. Se nos olharmos detalhadamente, perceberemos o quanto nos parecemos com o mesmo. E assim, o estrangeiro deixa de ser o estrangeiro. Tal como Kafka nos assemelha a barata, os diretores de alguns filmes de terror nos assemelham a zumbis que comem cérebro, ou a alliens predadores, ou a robôs exterminadores, Camus nos metamorfoseou em estrangeiro, para que percebêssemos que o Sr. Meursault não tem nada de distante de nós mesmos. Somos nós nos olhando no espelho.

1Camus, Albert. O estrangeiro. Editora Abril, São Paulo, 1972, Pág, 35.

2Op. Cit. Pág, 40.

3Op. Cit. Pág, 56.

4Op. Cit. Pág, 58.

5Op. Cit. Pág. 59.

6Op. Cit. Pág. 85.

7Op. Cit. Pág. 104.

8Op. Cit. Pág. 144.

9Op. Cit. Pág, 154.

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Resenha de "O curioso caso de Benjamin Button" de F. Scott Fitzgerald.

 

O curioso caso de Benjamin Button – F. Scott Fitzgerald:

Coleção Folha grandes nomes da Literatura.

Obra linda e magnífica, assim como o filme também. Cheia de ironias pelo autor, que me fizeram dar boas gargalhadas. Com toda certeza, a obra é convidativa para se conhecer outras publicações do escritor.

Trata-se da história de vida de uma pessoa que ao invés de nascer bebê, nasce um velho de mais de 70 anos de idade. O pai, um rico empresário no setor de botões e uniformes, quando chega ao hospital se depara com a estranheza do médico, das enfermeiras e outros (as) sobre o estado de seu filho recém nascido. A revolta do Sr. Button é visível por não ter recebido uma criança “normal”. A família também o rejeita: avôs e avós e toda a cidade.

Após tentar estudar em Harvard, ele é expulso pelo professor que o recebe e por alunos e alunas revoltados (as) por entenderem que se tratava de um farsante. Tempos depois, Benjamin conhece a Srta. Hildegarde, por quem se apaixona, casa e tem um filho.

Com o passar do tempo, porém, as coisas iam se invertendo. Enquanto a Sra Hildegarde envelhecia, Benjamin rejuvenescia. E essa diferença nos hormônios e corpos de ambos, trouxeram diferenças irreconciliáveis. Enquanto ele estava se tornando um fanfarrão de festas, ela estava no tempo de se acalmar e aproveitar a beleza da vida em casa.

Chega o momento em que Benjamin quer retornar ao exército. Se alista, mas pela cara de criança que possui, tem chamado seu filho para buscá-lo no quartel, o que o faz passar por grande vergonha. O filho, Roscoe, já lhe chamara a atenção diversas vezes antes por outros motivos. Pouco tempo depois, nasce o neto de Benjamin, filho de Roscoe, que assume os negócios da família.

A idade avança e nosso velho Benjamin agora é uma criança que brinca com os brinquedos de seu neto. A babá do neto, também era a cuidadora de Benjamin. Ou seria sua babá também?

Com o passar do tempo, nossa velha criança já não se lembrava de mais muita coisa. Não lembrava da última refeição, do rosto das pessoas. Já não enxergava bem também. Somente sentia frio, calor, fome, sede e chorava...

Considerações:

Outra questão menos importante é: todos nós, de alguma forma, na velhice, voltamos a ser crianças. Voltamos a ser dependentes em alguma medida de outras pessoas, dos mais jovens muito provavelmente. Voltamos a ser dependentes de cuidados médicos, hospitalares, profissionais, entre outros. Voltamos a depender dos cuidados dos familiares que devem saber que um dia também serão velhos e serão dependentes de outros (as). A maturidade e a experiência da velhice, nos é reconfortante pela memória. É essa lembrança e experiência que nos diferencia dos jovens: passamos pelos erros que eles passaram. Erramos e podemos ajudar para que estes não errem. Mas somos ouvidos?

O livro também trata de preconceito, da vida difícil que as pessoas “rejeitadas” ou consideradas “anormais” vivem. Pode se entender aqui a difícil vida por que passa praticamente todas as minorias em todo o mundo: mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, trans gêneros, judeus, palestinos, negros, favelados, etc... todos sabem o que Button passa a vida toda nas suas próprias peles.

A obra é muito bonita, pois nos faz tentar entender o que é a vida. Nos ajuda a pensar em qual é a maior característica de estar vivo, do que é viver, das características de cada uma das fases que vivemos. O que nos define como humanos? Essa é outra pergunta que me veio a cabeça ao término do livro. A lembrança é a maior marca da vida. É a memória, a única coisa que levamos conosco até o nosso fim... e não por completo, mas provavelmente as coisas mais belas e importantes por que passamos. O que nos define como humanos é a capacidade de entender, interpretar, pensar e ter boas lembranças sobre nossas próprias memórias. A memória é o que temos de mais sagrado, de mais pessoal, de mais íntimo. É o registro do que fomos e somos, do que fizemos e deixamos de fazer. O que somos sem nossas memórias? Existimos ainda sem a memória? Talvez não. Talvez sejamos apenas como vegetais que não podem refletir e lembrar sobre nada do que passou em suas vidas. Viver a vida sem reflexão, é como não viver. É como vegetar. Existem humanos que são vegetais pois não lembram, não refletem, não pensam sobre si e sobre os outros. Como diria Sócrates, Adorno e tantos outros filósofos, cada um a seu modo, uma vida não refletida, não vale a pena ser vivida.



Pequena resenha de Maquiavel, O Príncipe.

 

Nicolau Maquiavel (1469-1527):

O Príncipe:

A leitura da obra foi realizada na edição da Coleção “Folha, Livros que mudaram o mundo”, mas a resenha foi retirada de cópia baixada pela Internet. As notas de rodapé, são referentes as páginas da obra da Folha de São Paulo.

Maquiavel inicia a discussão de como um príncipe deve manter o seu reino e sua nova conquista. Nunca deve basear seu poder nas mãos de outras pessoas. Sempre precisa estar diretamente ligado aos detalhes ou a própria existência do Governo.

Disso se extrai uma regra geral que nunca ou raramente falha: quem é causa do poderio de alguém arruína-se, por que esse poder resulta ou da astúcia ou da força e ambas são suspeitas para aquele que se tornou poderoso.1

O curioso é que a primeira impressão, imagina-se que o autor faz seus aconselhamentos baseados em opiniões próprias ou achismos, o que no decorrer da obra percebe-se não ser verdade. Todas as suposições ou conselhos são baseados em fatos históricos que o precederam. (pg 18). Isso demonstra algo diferente até então nas clássicas obras de política do mundo Ocidental. Antes, praticamente todas as grandes obras, se baseavam em opiniões, argumentações ou achismos sem fundamentação empírica, histórica, prática ou real. Eram projetos, idéias, teorias, entre outros. Maquiavel neste ponto parece se aproximar dos futuros empiristas ingleses que tendiam a se basear muito mais nas experiências práticas do que nas idéias.

Contudo, nas repúblicas há mais vida, mais ódio, mais desejo de vingança; não deixam nem podem deixar esmaecer a lembrança da antiga liberdade: assim, o caminho mais seguro é destruí-las ou habitá-las pessoalmente.2

Apesar das críticas, Maquiavel demonstra-se um fiel Republicano. Maquiavel traz consigo aquela idéia do homem que se esforça na vida ou no trabalho e que deve ser recompensado por tal esforço. Aparentemente o que se entende disso é que ele traz consigo os valores do homem liberal, da vontade de ser esforçado e de vencer na vida por méritos próprios, o que constitui a idéia do self made man.

Aqueles que somente por fortuna se tornam de privados em príncipes, com pouca fadiga assim se transformam, mas só com muito esforço assim se mantêm: não encontram nenhuma dificuldade pelo caminho porque atingem o posto a vôo; mas toda sorte de dificuldades nasce depois que aí estão. São aqueles aos quais é concedido um Estado, seja por dinheiro, seja por graça do concedente.3

O uso da força para conquistar um Estado ou o uso de favor de conterrâneos para mesma atividade não parece ser algo intolerável pelo autor. Não em seu tempo.

Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no sair dos perigos e a grandeza de seu ânimo no suportar e superar as adversidades, não se achará por que deva ser ele julgado inferior a qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua exacerbada crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades, não permitem seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode, assim, atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele conseguido.4

Pode se dizer que a partir dessa nova forma de se conquistar o Estado ou de mantê-lo (utilizando-se do uso de muita força e até do terror contra a população), Maquiavel inicia o que poderia mais tarde se tornar uma ética de padrão diferenciado do padrão da Igreja e que as religiões impunham ao mundo naquele momento. Maquiavel é completamente racional na questão política e bastante prático: ele escreve uma obra para ser usada como livro de cabeceira dos reis naquele momento da história afim de ajudá-los a manter a mínima governabilidade se afastando dos credos do cristianismo no que toca as relações do poder e dos súditos. Ao escrever uma obra sem citação alguma de textos considerados sagrados ou outros tipos de referências teológicas cristãs, nosso autor demonstra coragem, autonomia e independência diante do pensamento dominante de então. Quando lhe acusam de ser o pai da idéia de que os fins justificam os meios, percebe-se um grande equívoco neste argumento. Maquiavel respeita as regras do jogo.

O uso da violência para garantir a governabilidade deve ser aceito pelo Príncipe. As crueldades não podem ser esquecidas ou deixadas de lado. Mas devem ser feitas de uma única vez para não fazer o povo entender como castigo eterno. Portanto, não deve-se estender por muito tempo.

Penso que isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste mas sim se as transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem.5

As forças de uma pátria, principado ou de uma Cidade Estado, aparentemente são medidas pelo autor de acordo com o grau de esforço e sacrifício de um povo ao defender seu principado e seu soberano. (pg 28 e 29).

Armar os Estado com exércitos próprios é dar vida longa e segura ao povo e ao poder. Ao dizer que determinados povos são livres pois possuem exércitos nacionais, Maquiavel demonstra claramente qual a importância das armas para a existência e manutenção dos governos em um mínimo funcionamento necessário à sociedade. Esse ponto de vista vai de encontro também ao que escreve o inglês Thomas Hobbes em sua obra O Leviatã. (pg 31).

Conclui pois Maquiavel, que , para se ter um mínimo de segurança, é necessário ter um exército próprio, pois, confiar em tropas auxiliares é péssimo, em mercenários é ruim e em tropas mistas também não é bom, o que garante para o autor o uso de exércitos do próprio Estado.

Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto não estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora.6

É o uso das armas que garante governabilidade ao Príncipe:

Por experiência se vêem príncipes sós e repúblicas armadas fazerem grandes progressos, enquanto se vêem tropas mercenárias não causarem mais do que danos. Ainda, uma República armada de tropas próprias se submete ao domínio de um seu cidadão com muito maior dificuldade do que aquela que esteja protegida por tropas mercenárias ou auxiliares.7

Ao entrar na discussão se deve o Príncipe ser amado ou temido, diz que deve-se usar ambas as ferramentas com o povo e, não sendo possível utilizar as duas, o Príncipe deve preferir ser temido. O autor demonstra neste momento uma noção de ser humano que também parece se assemelhar a de Thomas Hobbes. (pg 38).

Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se.

E logo adiante continua:

Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de forma que, se não conquistar o amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito bem coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguirá sempre que se abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus cidadãos e de seus súditos e, em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém, faça-o quando existir conveniente justificativa e causa manifesta. Deve, sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio.8

Também deixa claro que deve evitar ser odiado pelo povo. Também diz que se fores comedido com o dinheiro do povo, será amado pelo mesmo pois não cobrará mais impostos. Caso ocorra o contrário, poderá ser odiado.

Em trecho seguinte defende a idéia que todo governante deve saber usar da força e da inteligência (das Leis) para governar. É essencial carregar consigo uma das duas naturezas afim de manter sempre o povo temente ao seu poder.

O uso da dissimulação, quebra de contrato ou outros métodos e táticas também pode ser usado pelo Príncipe para governar. Pois deve o governante ter a qualidade de leão e de raposa. (pg 40).

Deveis saber, então, que existem dois modos de combater: um com as leis, o outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo muitas vezes não é suficiente, convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe torna-se necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores, os quais descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confiados à educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável. Necessitando um príncipe, pois, saber bem empregar o animal, deve deste tomar como modelos a raposa e o leão, eis que este não se defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos. É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte.

E continua:

Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para justificar a sua quebra da palavra. Disto poder-se-ia dar inúmeros exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram tornadas írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com mais perfeição, soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas é necessário saber bem disfarçar esta qualidade e ser grande simulador e dissimulador: tão simples são os homens e de tal forma cedem às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar.9

Para Maquiavel, todo governante deve carregar consigo 5 qualidades: piedade, lealdade, integridade, humanidade e religião. A última é a mais importante de todas para o autor pois acredita o mesmo que deve se demonstrar ser um homem bom para as pessoas, por isso demonstrar sua religiosidade. Mas o que também se entende é que homens bons, não precisam ser a fundo, pessoas religiosas (ou pelo menos aparentar ser) (pg 40). Ele finaliza este capítulo XVIII dizendo que o que importa são os fins quando não existem Tribunais para se recorrer. Ou seja, num mundo sem Lei e ordem, sem Estado ou onde as regras são a do vale tudo, aí sim, os fins justificam os meios. Caso contrário, existem regras a serem seguidas por todos. Quando o príncipe não tem mais saídas ou para onde apelar, os fins, aí sim, justificam os meios. (...) nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas.10

Pouco adiante, nos remetemos a algo presente na realidade brasileira e que virou um grande escândalo, foram as palavras de Rubens Ricupero numa entrevista com o jornalista de TV Globo, Carlos Monforte, onde o embaixador diz: “o que é bom a gente mostra, o que é ruim, a gente esconde”. (Pg 42).

Daí pode-se extrair outra conclusão digna de nota: os príncipes devem atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça. Novamente concluo que um príncipe deve estimar os grandes, mas não se fazer odiado pelo povo.11

E continua:

Concluo, portanto, que um príncipe deve dar pouca importância às conspirações se o povo lhe é benévolo; mas quando este lhe seja adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque este é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar.12

Maquiavel volta a questão de ser odiado ou não e por quem se deve ou não ser odiado. Diz que se deve evitar a cólera de grupos organizados da sociedade (tal como a classe dominante), mas acima de tudo, deve-se evitar o ódio do povo. E em algumas situações é importante se utilizar do saco de maldades. (Pgs. 43 e 45).

Ao retratar a questão das construções com que deve se preocupar o Príncipe, Maquiavel fala da inutilidade dos grandes castelos pois de nada adianta se cercar para se isolar do povo, pois quando esse é revoltado contra o governante, nada o detém. Por outro lado, Maquiavel está de acordo na construção de grandes muralhas que defendam as cidades e o povo.

Maquiavel finaliza o último capítulo na esperança de que um príncipe venha libertar a Itália da dominação dos Bárbaros. Faz exaltação da força do homem Italiano e de sua superioridade em força em relação aos demais homens europeus e do mundo. É saudosista e nacionalista defendendo o espírito bélico de um futuro exército Italiano em relação a Espanha, França e Suíça. Finaliza conclamando o povo Italiano a receber e a apoiar a vinda de um Príncipe salvador da Itália, um verdadeiro líder, um condottiere. É pena que o chamado de Maquiavel tenha demorado tanto a ser ouvido e tenha caído nos ouvidos do fascismo italiano personificado na figura de Benito Mussolini. Enfim, talvez este seja o grande objetivo da obra de Maquiavel, a de que seu livro se tornasse importante ferramenta de auxílio aos futuros príncipes Italianos, com o objetivo de fundar o Estado, a nação Italiana ou mesmo promover a unificação destes povos contra os elementos externos e invasivos.

1 O Príncipe. Maquiavel, Nicolau. São Paulo. Folha de São Paulo. 2010. Pg. 16.

2 Op. Cit. Pg. 18.

3 Po. Cit. Pg. 20.

4 Op. Cit. Pg. 24.

5 Op. Cit. Pg. 25.

6 Op. Cit. Pg. 30.

7 Op. Cit. Pg. 31.

8 Op. Cit. Pgs. 38 e 39.

9 Op. Cit. Pg. 40.

10 Op. Cit. Pg. 40 e 41.

11 Op. Cit. Pg. 42.

12 Op. Cit. Pg. 42.