quarta-feira, 19 de abril de 2023

Libertando a vida: a revolução das mulheres, Ocalan, Abdullah, 2016.

 

Libertando a vida: a revolução das mulheres, Ocalan, Abdullah, 2016.1


Retiro aqui pequenos trechos da obra do líder dos Curdos tratando da história das mulheres na região da antiga Mesopotâmia. Por volta de três mil anos antes de Cristo, comunidades diversas viviam em sistema de matriarcado, em paz, sem guerras, livres, sem propriedade, sem Estado, sem intervenção da religião na política nos assuntos do dia a dia.


Aos poucos, o poder dos homens foi se associando com o poder dos antigos xamãs e dos líderes guerreiros, homens desejosos de poder que queriam o poder para si. As mulheres naquele momento eram ouvidas e tinham o poder de mãe, de curandeiras, de parteiras, de guerreiras, tinham o poder do conhecimento da agricultura e da domesticação dos animais também. Nosso autor chega a afirmar que é obra dessas sociedades matriarcais, entre elas, os antepassados dos Curdos, Sumérios e outros povos, de que a revolução agrícola, a formação das primeiras sociedades, a sedentarização do homem, o domínio das técnicas de domesticação dos animais, entre muitas outras, obra das mulheres.


Porém, a ganância dos homens foi aos poucos corroendo esse poder das mulheres. Se aproveitando da força, das técnicas de caça, do convencimento dos protosacerdotes (xamãs), começaram a usá-las contra as mulheres, minando aos poucos seu poder. Aos poucos novos mitos, lendas, estórias, religiões, foram sendo adaptados, incorporados ao imaginário daquelas sociedades retirando a poder da mãe, da mulher, da cuidadora, da guerreira, da caçadora e limitando seu papel aos problemas da casa.


Portanto, a origem de nossos graves problemas sociais se encontra nas sociedades patriarcais, que se converteram em sociedades de culto, quer dizer, religiosas, em torno do homem forte. Com a escravidão da mulher, o terreno estava fértil para a escravidão não só dos meninos, mas também dos homens” 2


A escravidão da mulher se tornou o caminho para poder escravizar as crianças, outros povos, o diferente. O acúmulo de excedentes se tornou base para a construção da propriedade privada. O mal estava plantado.


Em uma organização como essa, na qual o homem era o proprietário dos filhos, o pai queria ter tantos filhos quanto possível (em especial, meninos) para alcançar o poder. O domínio dos meninos lhe permitiu aproveitar a acumulação de mulher-mãe: o sistema de propriedade foi criado. Próxima à propriedade coletiva do estado clerical, a propriedade privada da dinastia foi estabelecida. A propriedade privada também exigiu o estabelecimento dos direitos de paternidade: requeria-se que a herança pudesse passar (principalmente) aos rapazes.” 3


A propriedade foi criada para dar mais poder aos homens e foi resultado da escravização das mulheres inicialmente, pois este trabalho delas é que permitiu ao homem criar o excedente. E é assim até os dias de hoje: para os homens enriquecerem, precisam que as mulheres sejam suas escravas do lar.


Essa ruptura sexual foi tão radical que resultou na mudança mais significativa já vista na história. A essa transformação quanto ao valor das mulheres na cultura do Oriente Médio podemos chamar a primeira ruptura maior ou contrarrevolução sexual. Denomino-a contrarrevolução porque não contribuiu em nada para o desenvolvimento positivo da sociedade. Pelo contrário, conduziu a uma extraordinária pobreza da vida para estabelecer a dominação total de um patriarcado rígido, provocando a exclusão das mulheres.” 4


Ocalan denomina esse processo de contrarevolução sexual. E seria a pior de todas as contrarevoluções da história, pois faria com que as mulheres e parte da humanidade virassem escravos dos homens e criasse no futuro distante o sistema mais perverso para a vida humana e ambiental na história do planeta e dos homens: o capitalismo e o Estado para protegê-lo.


Havia se dado a transição para uma cultura social unidimensional, extremamente masculina. A inteligência emocional da mulher, que criava maravilhas, era humana e estava comprometida com a natureza e a vida, se perdeu. Em seu lugar nasceu a maldita inteligência analítica de uma cultura cruel que havia se rendido ao dogmatismo e se separado da natureza; que considerava a guerra como a maior virtude e desfrutava do derramamento do sangue humano; que considerava legítimo o tratamento arbitrário da mulher e sua escravidão. Essa inteligência é oposta à inteligência igualitária da mulher, focada para a produção humanitária e para a natureza viva.” 5


A lógica autoritária, violenta, positivista das ciências se inicia distantemente, como diria o próprio Theodor Adorno. Para o filósofo Alemão, na antiga Grécia, nos contos e estórias dos antigos e em especial na literatura de Homero, em Ilíada, para ser mais específico, já constava essa lógica cega da busca dos homens por poder, por desumanizar o próximo, o diferente. A lógica de escravizar para enriquecer e produzir sempre o excedente, as fortunas e o poder sem fim dos homens, inseguros...


Essa união entre os xamãs e os guerreiros homens das tribos é que inicia o processo de hierarquização forçada e autoritária dentro das sociedades antigas. É uma hierarquia diferente das sociedades matriarcais, pois, antes, a obediência se devia pelo respeito, pelo conhecimento, pela experiência das mulheres e não somente pelo uso da força como começa a acontecer com os homens, quando chegam ao poder.


Portanto, para Ocalan, a inversão da ordem matriarcal pela patriarcal não foi um processo natural como podem muitas argumentar ou um processo que haveria de acontecer em algum momento da história humana. Foi um golpe, uma contrarevolução na história humana. Assim também o nascimento das classes sociais: um fato produzido propositalmente por homens que eram profundamente invejosos das mulheres, inseguros, raivosos, machistas e por fim, misóginos.


Após essa derrota, lacerações profundas ocorreram na sociedade comunitária das mulheres. O processo de se tornar uma sociedade hierárquica não foi fácil. É a fase de transição da sociedade comunitária primitiva para o Estado. Finalmente, a sociedade hierárquica tinha que se desintegrar ou tornar-se Estado.” 6


É a hierarquia violenta, forçada, cega dos homens quem cria o Estado. Aqui, provavelmente Pierre Clastres não discordaria de Ocalan.


Na verdade, foi a sociedade hierárquica e patriarcal que subordinou mulheres, jovens e membros de outros grupos étnicos; tudo isso foi feito antes do desenvolvimento do Estado.”7


Ou seja, o Estado nasce para dar prosseguimento ao modelo de exploração da nova sociedade patriarcal, baseado na multiplicação do excedente, propriedade privada, no poder religioso (agora politeísta e machista) e no poder das armas, o Estado.


A mulher não é perseguida como gênero feminino, mas como fundadora da sociedade matriarcal.”8


A sociedade comunitária é contrária a sociedade estatutária. Comunidade vive em paz, harmonia, hierarquia baseada no saber e na experiência e não na violência e na força como as sociedades Estatais assim impõem. A mulher precisa resgatar a vida em comunidade para que as sociedades matriarcais voltem a florescer. Essa deve ser a função do povo Curdo e de todo revolucionário em todo o mundo, segundo Abdullah Ocalan. Sem a emancipação feminina, nenhuma outra emanicipação será concretizada. E a libertação das mulheres só ocorrerá com o fim do Estado e do sistema capitalista e assim, também, com o fim do sistema patriarcal.


A discriminação de gênero teve duplo impacto destrutivo sobre a sociedade. Primeiro, abriu as portas da sociedade à escravidão. Em segundo lugar, todas as outras formas de escravidão foram implementadas com base na conversão da dona de casa. A conversão em dona de casa não só tem como objetivo recriar um indivíduo como um objeto sexual, o que não é o resultado de uma característica biológica.” 9


A primeira das escravidões permitiu que todo outro tipo de escravidão ocorresse. A busca por poder, força, excedentes, terras, propriedades diversas, abriu o caminho para que mulheres, crianças, idosos, outros povos, outras etnias também fossem escravizados. Nos nossos dias, esse processo de escravidão é mais requintado para as mulheres: a figura do amor e do romantismo serviram para ocultar o caráter exploratório do trabalho do lar.


E ele continua o raciocínio:


Para que o sistema funcione, toda a sociedade deve ser submetida à conversão em dona de casa. O poder é sinônimo de masculinidade. Assim, a sujeição da sociedade à conversão em dona de casa é inevitável, porque o poder não reconhece os princípios da liberdade e da igualdade. Se o fizesse, não poderia existir. O poder e o sexismo na sociedade compartilham a mesma essência.”10


Enquanto existirem mulheres que são donas do lar, a escravidão das mulheres prossegue! E para que essa escravidão acabe, o homem precisa deixar de se apegar as tarefas do poder, do consumo desenfreado e sem sentido dessa vida lesada na modernidade capitalista. A negação do trabalho escravo das donas do lar, coloca em risco a própria existência do sistema capitalista de exploração e escravidão.


Sem entender como se formou socialmente a masculinidade, não se pode analisar a instituição do Estado e, portanto, definir com precisão a cultura da guerra e do poder relacionado à categoria de Estado. Saliento esse problema porque é preciso expor as personalidades divinizadas e macabras que se desenvolveram como resultado de todas as divisões de classe subsequentes, e todos os tipos de exploração e de assassinato que cometeram. A subordinação social das mulheres foi a contrarrevolução mais vil já realizada.” 11


Para nosso autor, a segunda ruptura com as mulheres se deu no espaço religioso também, quando o politeísmo deu lugar ao monoteísmo, quando a poligamia, torna-se exclusivamente privilégio dos homens, quando o poder religioso elege o homem como centro das religiões e futuramente como centro da Filosofia, da Ciência e da arte no Ocidente e no Oriente também. Até no papel santo das religiões o homem foi alçado a figura de ser especial, enquanto a mulher foi condenada a figura de inferior, escrava, pecadora.


O papel da família também é muito importante para nosso autor. Ele tem consciência crítica de que a família foi uma instituição aprisionada pelo machismo e depois pelo feudalismo e o capitalismo também. Ela é hoje base dessa exploração sobre a mulher, sobre as minorias e o restante da sociedade. Devemos libertar a família para que ela se torne a base da futura sociedade democrática. Nossas ações devem começar desde já, acabando inicialmente com o trabalho exclusivamente da mulher no lar. Mulher do lar é escrava e devemos acabar com isso. Esse é um dos primeiros passos para que a mulher inicie sua libertação e para que a exploração também acabe.


O objetivo final de sua guerra ideológica é garantir seu monopólio sobre o pensamento. Suas principais armas são a religiosidade, a discriminação de gênero e a ciência como religião posi-

tivista. Sem hegemonia ideológica, apenas com a política e a repressão militar, a manutenção da modernidade será impossível.”12


A crítica ao positivismo como religião dos poderosos, ao utilizarem a Ciência para uso da manutenção de seu domínio é evidente para nosso autor. A discriminação de gênero mantém as mulheres sob a escravidão do lar. As religiões, todas elas sem exceção, mantém a escravização sentimental e ideológica. O uso do cientificismo que se transforma em Positivismo para dominar as Ciências é o uso da razão para sedimentar o discurso do poder e de sua inevitabilidade. Somente com a força das armas seria impossível vencer.


Quando o capitalismo viu a oportunidade de se converter em um sistema, começou por eliminar todas as sociedades fundadas na cultura da mãe-mulher. Durante a primeira modernidade, a força da sociabilidade feminina que lutava por subsistir foi queimada na fogueira do caçador de bruxas.”13


As herdeiras do conhecimento milenar das mulheres, vindas de várias sociedades, aos poucos, ao menos na Europa, foram sendo condenadas à fogueira. Essa foi uma das formas de manter o monopólio do saber nas mãos da igreja, dos homens e da classe dominante daquela época. Foi a chance que o capitalismo teve de se implantar como sistema.


O medo interiorizado à fogueira colocou-a na Europa sob total servidão ao homem. Depois de eliminar as mulheres, o sistema destruiu de forma desumana a sociedade agrária e a da vila. Enquanto existisse uma sociedade democrática e comunitária, o capitalismo não poderia obter o máximo poder e benefícios. Portanto, esse tipo de sociabilidade foi inevitavelmente aniquilado. Assim, a subjugação total da escrava mais antiga, a mulher, converteu-se no modelo para as outras vidas escravizadas: as dos filhos e as dos homens.”14


Conjuntamente ao extermínio das sábias bruxas, o extermínio de formas de convivência humana diferentes do padrão da religiosidade e da autoridade patriarcal, foram se tornando regra na Europa e no Oriente Médio também. Esse novo modo de vida machista, violento, baseado na propriedade, monoteísta, destruiu as formas de vida mais humanas do passado e trouxe consigo a colonização e o extermínio de povos e minorias nos dias de hoje também.


Claro, matar o homem dominante é o princípio fundamental do socialismo. Isso é o que significa matar o poder: matar a dominação unilateral, a desigualdade e a intolerância. Além disso, é matar o fascismo, a ditadura e o despotismo. Deveríamos expandir esse conceito para incluir todos esses aspectos.” 15


Matar o patriarcalismo é essencial para que qualquer socialismo, comunismo e anarquismo dêem certo assim como a derrota final de todo fascismo. Derrotar esse homem dominante para nosso autor é também derrotar o Estado e o próprio sistema capitalista. É fundamental que todas as esquerdas do mundo entendam isso.


Sem igualdade de gênero, nenhuma exigência de liberdade e de igualdade faz sentido. Na verdade, a liberdade e a igualdade não são alcançadas se a igualdade de gênero não é atingida. O elemento mais permanente e completo de democratização é a liberdade das mulheres.”16


A liberdade e a igualdade entre homens e mulheres (e nisso também incluímos a comunidade LGBTQIA+) só acontecerá quando a liberdade de gênero também acontecer. Não adianta pensar em libertar o proletário sem a liberdade das mulheres de casa, das mulheres do lar, sejam elas trans ou não. Toda a liberdade da humanidade está associada a emancipação das primeiras escravas. Sem elas, jamais poderemos sonhar com a profunda e real emancipação de toda a humanidade.


Como a hierarquia e o estatismo não são facilmente compatíveis com a natureza feminina,

um movimento libertador das mulheres deveria se esforçar para alcançar formações políticas anti-hierárquicas e não estatais.”17


A própria natureza da organização social das mulheres, ou seja, o matriarcado, produziu uma sociedade livre da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem. Por isso a existência do Estado já é anti-natural, anti-feminina, pró-machista, autoritário e violento por natureza.


As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária.”18


As mulheres são a chave para a libertação da humanidade. Quando as mulheres se derem conta de que são escravas do lar ou escravas dos homens, farão a libertação de si e dos outros.


Eu acho que deveria ter prioridade sobre a libertação das pátrias e do trabalho. Se quiser ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a libertação das mulheres é uma revolução dentro da revolução."19


A libertação da mulher é o primeiro passo para a libertação de todas e todos. É a libertação que vai gerar outras liberdades em um efeito cascata ou em série. Não podem ocorrer mais outras escravizações em parte alguma do mundo se as mulheres se tornarem livres. É inconcebível que outros povos, etnias, gêneros, etc, possam ser escravizados se a mulher se libertar. É condição para a liberdade de todos que a mulher reaja e se livre das amarras de sua escravidão.

1Resenha do professor Fernando H. O. Monteiro.

2Pg 36.

3Pg. 38.

4Pg. 39.

5Pg. 39.

6Pg. 41.

7Pg. 41.

8Pg. 42.

9 Pg. 43 e 44.

10Pg. 44.

11Pg. 45.

12Pg. 59.

13Pg. 60.

14Pg. 60 e 61.

15Pg. 67.

16Pg. 68.

17Pg. 70.

18Pg. 74.

19Pg. 74.