sábado, 9 de fevereiro de 2019

Resenha da obra "Os moedeiros falsos" de Andre Gide.

Gide, Andre. Os moedeiros falsos. Editora Estação Liberdade.

Publicada em 1925, a obra traz consigo uma série de críticas a costumes, preconceitos, comportamentos religiosos e a própria condição humana naquele momento da história de conviver com a Modernidade.

Trata-se de um roteiro envolvendo principalmente três amigos: Olivier e Bernard, de idades próximas, o primeiro passando no Doutorado e o segundo finalizando a graduação. O terceiro personagem, o narrador e o próprio Gide na obra, é Édouard, tio de Olivier. Olivier ainda tem dois irmãos, Vincent, o mais velho e George, o caçula e figura central no entendimento final da obra. Édouard é escritor famoso e está no momento da leitura desta obra, escrevendo um livro de mesmo título de nosso livro: os moedeiros falsos. Édouard também deseja escrever um diário sobre o livro, que também será publicado como um dos livros de Gide.

O livro começa com o diálogo entre Olivier e Bernard, onde o segundo pede abrigo ao amigo para sair de casa, acreditando não ter o amor dos pais de que necessita e nem ser filho legítimo dos mesmos. Deixa uma carta ao Sr. Proftendieu, Juiz da cidade de Paris e teoricamente, pai de Bernard.

Vincent, irmão de Bernard, tem uma amante, que está grávida de um filho dele e que lhe implora que ambos fiquem juntos. Esta amante é Laura, casada com outro homem e que não sabe das estripulias da esposa. Vincent cursa Medicina. Gastou 5 mil Francos, guardados a anos por sua mãe, Pauline, numa mesa de jogo. É o típico burguês sem caráter e sem escrúpulo algum ou respeito pelos pais. É Laura, sua amante quem fará com que a amizade de Bernard e Édouard se estabeleça e se fortaleça, pois Laura já é conhecida de Édouard a muitos anos. Este sente um profundo amor por Laura, que ele entende jamais ter sido correspondido. Por isso, Édouard, nutre por Laura uma amizade imensa.

Aqui começa uma crítica ácida aos costumes burgueses, ao mal caratismo, a hipocrisia, a falta de ética de Vincent e de todo burguês e pequeno burguês no trato com as pessoas no dia a dia. Gide também demonstrará um profundo desapego com a forma de se praticar o amor e a própria instituição do casamento. Tais críticas do autor ficam expressas em diversos momentos da obra. “Quem quer que ame sinceramente, renuncia a sinceridade.” 1

Édouard chega a Paris para visitar sua meia irmã, Pauline e rever os sobrinhos. Neste momento tem uma surpresa quando percebe numa livraria da cidade, um pequeno jovem, que ele não conhecia até aquele momento, tentar roubar um livro. Édouard se adianta e dá o dinheiro ao pequeno jovem conversando com o mesmo afim de convencê-lo de que aquilo que ele iria fazer era errado. Descobrirá mais tarde o narrador que este pequeno ladrão, é George, o caçula de sua meia-irmã que não via a muitos anos.

Ao sair pela cidade, sendo recepcionado na estação de trem por seu sobrinho que o esperava, Olivier recebe o tio Édouard e resolve caminhar com o mesmo além de irem tomar um café. Édouard não percebe, mas deixa cair um bilhete onde guardava toda sua bagagem. Bernard já sabia pela conversa que havia tido na noite anterior que Olivier, seu amigo, encontraria Édouard, seu tio e segue os dois. Bernard vê o bilhete do guarda malas cair no chão e, ao invés de devolver de imediato a Édouard, vai até a estação ferroviária e pega as malas do escritor sem ao menos que este saiba. Ao roubar temporariamente as malas de Édouard, lê seu diário todo e acaba por conhecer dali, a amada Laura, tentando marcar a partir dali, um encontro com ela.

Laura é o amor de Édouard e de Bernard. Mesmo, ambos sabendo que ela estava casada quando se relacionou com Vincent e engravidou do mesmo, jamais a censuraram ou a maltrataram ou tiveram algum tipo de juízo malicioso ou maldoso com a mesma. Pelo contrário. Ambos sempre a trataram bem, com respeito, carinho e cordialidade, defendendo-a a todo instante. Parecem que ambos os personagens são defensores fiéis dos direitos das mulheres a terem mais liberdade do que naquele tempo.

O encontro ocorre e nesta altura da situação, Édouard já sabe que suas malas haviam sido roubadas e tenta a sorte para encontrar Laura e conjuntamente ao ladrão de suas malas que até aquela altura do campeonato, não sabia que o criminoso era amigo de seu sobrinho. Ficam todos amigos e a partir daí, Bernard passa a ser perdoado por Édouard e se torna secretário deste.

Antes deste encontro e deste princípio de amizade ocorrer, Bernard, ao ler os diários de Édouard descobre coisas importantes sobre o novo livro do escritor e da forma como este interpreta, cria e desenvolve seus romances e seus personagens. E é aí que nos apegaremos com mais cuidado na análise da obra como um todo. Gide, na pessoa de Édouard, está a todo instante fazendo uma crítica a falsa obra de arte, como se vê em seu diário que está sendo lido por Bernard.

Ele se diz que os romancistas, pela descrição demasiado exata de suas personagens, atrapalham mais a imaginação do que a servem e deveriam deixar que cada leitor representasse cada uma destas como lhe aprouvesse. 2

Gide está dialogando consigo mesmo e com o leitor, expondo através de seu diário o que pensa a respeito dos romances. Quando se descreve tão detalhadamente tais qualidades ou outras informações dos personagens, o romancista está matando a criatividade e imaginação do leitor. Isto para Gide será um problema central na interpretação da obra de arte, pois ela deixa de ser livre e passa a ser manipulada por aquilo que quer o romancista. Não existem mais liberdade de pensamento ou imaginação, mas apenas aprisionamento. Tal como quando assistimos um filme e nos deparamos com um ator que não tem nada a ver com o papel que interpreta. Isto se torna a morte da imaginação e da capacidade de viajarmos junto da obra de arte.

Despojar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance. Como a fotografia, há algum tempo, desembaraçou a pintura da preocupação com certas exatidões, o fonógrafo por certo limpará amanhã o romance de seus diálogos narrados, de que o realista muitas vezes se gaba. [...] não me parece que o romance puro [...] tenha de ocupar-se com isso. Não mais do que faz o drama. [...] O romancista, em geral, não dá crédito suficiente a imaginação do leitor. 3

Purificar o romance como as outras obras de arte foram purificadas. A descrição dos personagens é um crime contra a imaginação do leitor. O cinema o fará para a literatura. Não deve caber aos escritores tal façanha. O romance puro não deve se preocupar com estes detalhes sobre os personagens da obra; o leitor deve ser livre para fazê-lo. Adiante, ele continuará com tal crítica em diversas passagens da obra.

A crítica a religião também está presente na obra. Em um determinado momento da obra, chama o Catolicismo de “A singular faculdade de despersonalização” 4. Podemos entender aí, como em outros momentos, uma grande capacidade de o Catolicismo destruir a personalidade alheia. Pouco adiante, ele critica a arquitetura de suas Igrejas como “o próprio espírito dessa arquitetura angulosa e descolorida cuja sombria falta de graça, intransigência e parcimônia, se mostravam a mim pela primeira vez.” 5 Em outras passagens, também deixa claro sua discordância com o discurso religioso e mitológico.

À medida que uma alma se afunda na devoção, ela perde o sentido, o gosto, a necessidade, o amor da realidade. [...] A fascinação de sua fé os cega a respeito do mundo que os cerca e deles próprios. Para mim, que de nada faço tanta questão como de enxergar com clareza, fico atônito diante da espessura da mentira em que se pode comprazer um devoto. 6

Édouard, ao dialogar com outro personagem da obra, deixa claro qual sua opinião a respeito do fanatismo e de como vê um ser religioso: impedido de se esclarecer por si só. A passagem nos lembra Kant em O que é o esclarecimento? Quando Kant nos diz que é a perda da capacidade de nos orientarmos e nos guiarmos pelo uso da razão própria, sem deixar ser influenciado ou dominado por terceiros nas decisões que tomaremos em nossas vidas.

Gide retoma adiante, na figura de seu personagem, a crítica a obra de arte montada artificialmente pelos falsos romancistas:

Nunca consegui inventar nada. Mas estou diante da realidade como o pintor que diante do modelo lhe diz: dê me tal gesto, assuma tal expressão que me convém. Os modelos que a sociedade me fornece, se conheço bem sua elasticidade, posso fazê-los agir a meu bel prazer; ou pelo menos posso propor, à sua indecisão, problemas que resolverão a sua moda, de sorte que sua reação me instruirá. É como romancista que me atormenta a necessidade de intervir, de operar sobre o destino deles. Se tivesse mais imaginação, fabularia intrigas; eu as provoco, observo os atores, depois trabalho conforme me inspiram. 7

No passado e de certa forma, este comportamento ainda persiste até hoje, os pintores davam a oportunidade as pessoas que seriam retratadas em suas telas, de alterarem ao seu bel prazer, aquilo que menos lhes agradava. Com isso, a arte era feita a pedido do cliente, tal como um mecenas que pede ou compra determinadas obras de arte ou o patrão que deseja tal produção ou ritmo da mesma. Para Gide, a vida dos personagens deveria aparecer e nascer tal como ocorre na vida real: sem muitos planos ou preparo metódico no cotidiano. É algo quase espontâneo. Isto nos mostra que Gide prefere uma certa liberdade aos personagens, como se tivessem vida própria, do que manipulá-los para agradar ao apreciador da arte, tal como o pintor o faz e fazia.

Uma liberdade na interpretação da obra de arte, nos leva a um entendimento da Hermenêutica na forma como a obra de arte deve ser encarada. O leitor, apreciador ou o simples cidadão, deve participar da própria obra, ao interpretá-la de modo diferente, de seu modo particular, envolvendo sua própria subjetividade. Na maior parte das vezes, uma obra deixa de ser arte e se torna algo passível de ser simplesmente consumida, quando não envolve liberdade de participação, imaginação e entendimento por parte daquele que vai apreciar a arte. Desta forma, a arte é enfiada goela abaixo do indivíduo, o que o torna consumidor e não cidadão. Isto, por conseqüência faz da obra de arte uma mercadoria e não algo que possa ajudar as pessoas a refletir sobre a vida e a realidade.

Nesta passagem da obra, talvez fique claro o que mais de importante o autor quer deixar para seu leitor. A crítica a modernidade em que se encontra o homem já em fins dos XIX, começo do século XX até nossos dias, época em que Gide escreve tal obra. Num diálogo de Édouard com o Senhor de La Pérouse, fica claro seu pouco caso ou desrespeito com os mais velhos, como se estes não tivessem mais interesse para mais ninguém. No passado, os mais velhos eram ao menos ouvidos, eram grandes poços de sabedoria, montanhas de conhecimento. Nestes dias sombrios da modernidade, os mais velhos não servem para nada. O próprio desdém e desprezo consigo mesmo, é exemplo deste comportamento neste pequeno diálogo entre Édouard e o Senhor de La Pérouse:

- O senhor vai se resfriar – disse-lhe. – Não quer mesmo reacender o fogo?.... Vamos lá.
- Não... Há de ser aguerrido.
- O que! Isso é estoicismo?
- Um pouco. Foi justamente porque eu tinha a garganta delicada que nunca quis usar cachecol. Sempre lutei contra mim mesmo.
- Isso vai bem enquanto se conquista a vitória; mas se o corpo sucumbe...
Pegou minha mão e, num tom gravíssimo, como se me dissesse em segredo:
- Então seria a verdadeira vitória. 8

Ultrapassar os seus próprios limites é uma forma de se flagelar. É desumano por natureza. Esta á uma das características do homem moderno. A verdadeira vitória para estes homens da modernidade, são aquelas que vem recheadas de esforço. Essa sim é merecida. Lutar contra os próprios limites é lema dos estóicos, mas sobretudo da Modernidade. É como se entendêssemos o homem moderno como um conjunto de ações, emoções e pensamentos que tendem a nos oprimir, machucar, destruir individual e coletivamente. Nesta passagem da obra, isto fica muito claro. Os Filósofos estóicos na antiga Roma, ficaram famosos por encarar as questões do conforto e do prazer como maléficas a natureza humana. O prazer deveria ser evitado a todo custo e quando ocorresse, deveria ser racionalizado e utilizado do modo mais breve e rápido possível. O prazer era encarado de modo conservador. Este modo quase espartano de se encarar a vida e os prazeres que os sentidos do corpo humano possam trazer a todos nós, dá uma idéia de quanto esta forma dura de tratar o ser humano, era exceção da regra no passado. Hoje, ela é a regra. Adorno diz que quando nos tratamos de modo tão duro, desumano, metódico ao extremo, tão regrado, quase de modo militar, estamos nos coisificando e nos comparando a mercadoria ou a objetos sem valor. Quando fazemos isso com nós mesmos, estamos a poucos passos de fazer o mesmo com os outros também. Aí, de certa forma, reside a barbárie dos nossos dias.

Adiante, Gide, no papel de Édouard, dá a dica do que vê nos seus dias, nos escritos de seu diário. Eis aí um grande retrato do homem na Modernidade.

A tragédia moral – que, por exemplo, torna tão formidável a frase evangélica: “Se o sal se torna insípido, com que se há de restaurar-lhe o sabor?” É essa tragédia que me importa. 9

O que há de se fazer quando a referência que temos pelo que há de bom e do melhor se perde? Será esta a tragédia moral que nos fala o autor? O que vamos fazer quando as balizas utilizados por todos os homens e mulheres nas nossas sociedades em todos os tempos, para que possam viver em sociedade, se perdem? Como vamos viver em sociedade se toda e qualquer reflexão ética sobre nossas ações, e a moral que nos guia diante de tais reflexões, se perde? O que colocaremos no lugar, sabendo que quando se trata de poder, não existe vácuo? Talvez para Gide a resposta já esteja dada no fim da obra, a barbárie é o que nos resta.


Logo adiante, Gide irá novamente dialogar com o Senhor e a Senhora La Pérouse. Quando chega a casa destes, dá de cara com a Senhora que começa a lhe contar fofocas da vida de seu marido. São tantos os desabafos e rancores diários de toda uma vida que Édouard fica assustado. Isto lhe faz refletir, ao mesmo tempo em que ouve a velha, sobre a questão do amor nos nossos dias:

Resta que aí estão dois seres, amarrados um ao outro para a vida, e que se fazem sofrer abominavelmente. Noto com freqüência entre os cônjuges que intolerável irritação se apodera de um a menor protuberância do temperamento do outro, por que a “vida comum” faz com que haja atrito sempre no mesmo lugar. E se o atrito é recíproco, a vida conjugal não é mais que um inferno. 10

Talvez seja uma crítica ao próprio casamento, ou a monogamia ou até mesmo a defesa de um amor livre. Adiante, principalmente neste capítulo, Gide deixará claro o amargor de toda uma vida de duas pessoas que um dia se amaram, mas que depois de muitos anos de vida juntos, aprenderam a se suportar e não mais a se gostar. O amor está morto, talvez estas sejam as palavras de Gide que não saíram no livro neste capítulo, mas que deveriam estar na ponta dos lábios ou do lápis ao escrevê-la. Ou seriam estas impressões que o autor teve, apenas opiniões de pessoas que são intolerantes para consigo como para a vida também? Estas opiniões do casal La Pérouse sobre a vida conjugal e o comportamento de um e do outro, são decepções de pessoas que não sabem o que é o amor. De pessoas que são intolerantes por natureza. Não aceitam o diferente, não aceitam o que não está em harmonia com eles mesmos.

Ao saírem a noite para irem assistir uma apresentação de ópera, o Senhor de La Pérousse dá seus pitacos de intolerância para Édouard:

- Você notou que todo esforço da música moderna está em tornar suportáveis, agradáveis mesmo, certos acordes que tínhamos antes como dissonantes?
- Exatamente – retruquei; - tudo finalmente deve render-se e reduzir-se à harmonia.
- A harmonia! – repetiu ele dando de ombros. – Não vejo nisso senão um habituar-se ao mal, ao pecado. A sensibilidade se embota; a pureza se macula; as reações fazem-se menos vivas; tolera-se, aceita-se... [...]
- O senhor pretende entretanto restringir a música á simples expressão da serenidade? Nesse caso, um único acorde serviria: um acorde perfeito contínuo.
- Um acorde perfeito contínuo; sim, é isso, um acorde perfeito contínuo... Mas todo o nosso universo é vítima da dissonância – acrescentou com tristeza. 11

Provavelmente, Gide, ou Édouard entendem a vida como um conjunto de notas musicais dissonantes entre si. As vezes, algumas se tornam mais harmônicas, outras nem tanto e continuam em desarmonia. Para o Senhor de La Pérousse não é e nem deveria ser assim. O que importa, o que deveria reinar, é a harmonia absoluta. Típico comportamento de quem deseja a uniformidade das coisas, da arte, do povo, da cultura, das Ciências. A harmonia esconde o desejo de uma igualdade totalitária, que não respeita as minorias e a parte diante do todo. A harmonia que quer o fim do que é dissonante, é a harmonia que não aceita nada fora do Estado ou do coletivo. Nem nada contra o Estado e o coletivo. É a harmonia do fascismo, que deseja tudo na mais absoluta e transparente ordem. Aliás, que ordem não é fascista por natureza?

Adiante, em diálogo com outra personagem, a Senhora Sophroniska, que cuida do pequeno Boris, neto do Senhor de La Pérousse, (figura chave para entender o fim do livro), fica presente uma crítica à Ciência dominante, por parte da velha Senhora, que de certa forma, dá se a entender, que Édouard, concorda:

[...] essas divagações de crianças me informam muito mais do que poderia fazê-lo a mais inteligente análise do mais consciente dos sujeitos. Muitas coisas escapam a razão, e quem, para entender a vida, serve-se somente da razão, é semelhante a alguém que pretendesse pegar uma chama com uma pinça. Tem diante de si apenas um pedaço de madeira carbonizado, que logo cessa de flamejar.

Pegar a chama do fogo com uma pinça, quer nos dizer que existem questões da realidade humana que não são observáveis ou entendidas somente do ponto de vista da racionalidade. O sensível também é importante e deve ser usado como ferramenta para se compreender a realidade. Não é possível entender a vida e a realidade e os próprios homens se utilizando apenas de uma das ferramentas ou faculdades da natureza humana: sensível e inteligível devem caminhar juntas. Édouard, em trecho posterior do livro,12 concordará ou dará o braço a torcer pela Senhora. É possível haver um pouco do pensamento mítico equilibrando os excessos do científico. E continua a crítica da Senhora Sophroniska:

-Como os senhores adentram pouco a alma humana – exclamou; depois acrescentou bruscamente rindo: - Oh! Não falo do Senhor especialmente; quando digo os senhores, entenda: os romancistas. A maioria de suas personagens parece construída sobre pilotis; não tem alicerce, nem subsolo. Acredito de fato que se encontra mais verdade nos poetas; tudo aquilo que é criado apenas pela inteligência é falso. 13

A questão da obra de arte ser realizada para agradar as pessoas ou para fazê-las pensar a vida e a realidade está posta novamente. Uma arte superficial, sem estrutura, sem raízes, não é arte, é comércio. Uma arte livre, que dialogue ou construa uma reflexão nas pessoas, pode ser obra de arte. Esta também seria uma crítica aos cientistas de plantão, que defendem uma sabedoria embasada muito mais na razão e num saber formal do que nas artes, por exemplo. A verdade para a Senhora Sophroniska está na arte e não nas ciências e suas razões duras, tristes, frias, artificiais, que não conseguem enxergar ou entender a alma humana. A arte permite muito mais a liberdade do pensar e refletir do que as duras e limitadas regras e métodos das Ciências.

Adiante, a Senhora Sophroniska irá defender algo além. Irá dizer que é importante, senão fundamental para a construção do saber e de um novo mundo, uma postura que não seja tão racional como a dos Cientistas na Modernidade, mas que deve haver uma esperança, uma certa chama mística para com a mudança dos homens e da realidade humana. A mudança não é tão certa, fria e calculada matematicamente quanto a Física ou qualquer outra Ciência. Ela também pode nascer do místico, do espontâneo, do ilógico, do irracional ou das paixões. Não é somente a razão que determina a realidade dos homens em nosso mundo. O que foge a toda a lógica, o que beira o místico, talvez possa fazer a mudança.

Retomando a questão da obra de arte (sem deixá-la de lado em momento algum), Gide em um diálogo com a Senhora Sophroniska, logo adiante, descreve o que entende pela obra de arte em si:

Quer dizer que no lugar de contentar-me de resolver, a medida que aparece, cada dificuldade (e toda obra de arte não é senão a soma ou o produto das soluções de uma quantidade de pequenas dificuldades sucessivas), cada uma dessas dificuldades eu exponho e estudo.14

Aquilo que entendemos sobre uma determinada obra de arte, depois de muito esforço para compreendê-la, depois de várias considerações e conclusões a respeito da mesma, todos estes pensamentos, raciocínios, interpretações e conclusões que registramos sobre aquela peça ou obra, isso sim é a arte. O ato de passo a passo, etapa por etapa, tijolo por tijolo, ir construindo, como no processo educacional o saber necessário para a vida, é a obra de arte quem faz. A arte parece ter para Gide, uma função ou estratégia, principalmente educacional e de formação. Por isso, são romances de formação, pois tem por objetivo, ajudar o leitor a se educar, entender a obra e melhorar a si mesmo.

Não dá para não citar diversas referências na obra, a luz de diversos autores da Filosofia. Kant é citado com o “Imperativo Categórico” logo após as discussões sobre ética e moral na modernidade, dando a entender que ali poderia haver, no dever do homem Kantiano, um modelo ou projeto de moral e ética válidos; quando Bernard conversa com Laura, Descartes vem a tona no capítulo IV na II parte, enfim, as referências do autor, provavelmente vão no sentido de tentar estimular o leitor a descobrir novas leituras e ir conhecendo um mundo novo, talvez o da Filosofia.

Gide volta a discussão do que considera ser o tema mais importante de sua obra: o conflito entre o que é real e o que não é real. O autor está trabalhando um conflito interno da Estética dentro da Filosofia. Aqui também está descrito um conflito antigo da Filosofia, entre Materialistas e Idealistas, sendo os primeiros, o que Édouard chama de Realistas, tendo como exemplo, o que pensa Bernard e os Idealistas, o próprio Édouard se citando como exemplo. Os Idealistas tendem a montar uma estrutura romântica para embasar suas obras, partem de suas imaginações e assim tem de dar vida a algo que não existe, gerando uma literatura artificial, desapegada da realidade, distante de algo sincero nos seus personagens. Enquanto os materialistas tendem a ser mais próximos da realidade, se esforçando por entender o que se passa na vida material como espelhados na vida dos personagens e do próprio romance.

Num outro ponto de vista, os materialistas e os idealistas podem tentar criar romances que possam dar algum grau de liberdade a quem irá interpretar a obra de arte. Basta que entendam que existe a necessidade de que o leitor ou o observador da obra de arte, em outras palavras, o cidadão, possam ter a liberdade de analisar, escrever, opinar sobre o que ocorre com aquela obra que está sendo escrita ou vista. Este ponto de vista se aproxima da Hermenêutica. Escola que pensa em uma interpretação livre tanto da obra de arte quanto da forma como se faz Ciência nos nossos dias.

No retorno do diálogo com a Senhora Sophroniska, esta acaba por se mostrar uma pessoa completamente contraditória. Ela é a Médica responsável por analisar o pequeno Boris e livrá-lo de seus males. Se por um lado, a Senhora Sophroniska se mostra uma pessoa extremamente crítica quanto ao andar da forma como se faz ou constrói o saber, argumentando em prol dos poetas, da arte, contrariamente ao cientificismo e ao positivismo extremamente racionais, por outro lado, ao tentar aplicar suas palavras no dia a dia de sua profissão, percebe-se uma pessoa completamente contraditória. Édouard percebe, no relato que a médica lhe faz do pequeno Boris, que o discurso cientificista está impregnado na Doutora:

Sophroniska expõe às claras, desmontadas, as engrenagens mais íntimas de seu organismo mental, como um relojoeiro às peças do relógio que está limpando. Se, depois disso, o pequeno não bater na hora certa, aí sim, nada mais faria sentido.15

Aqui, neste trecho, está claro como o discurso da Ciência dominante, que encara o homem e a natureza como objetos a serem explorados pelas Ciências, vive de modo tão sombrio, mesmo naquelas pessoas que parecemos admirar e que parecem estar livres de tais dogmas, ensinamentos e métodos. Esta passagem é reflexo do Cientificismo e do Positivismo descobrindo e esmiuçando as entranhas mentais do pequeno Boris. Não é a toa que o infante não teve a menor capacidade de se defender ao término da obra, diante da barbárie que lhe imputaram a fazer. Temos uma Ciência que vê o ser como objeto de estudo e que é incapaz de percebê-lo como ser humano em si. Esta é a Ciência que ensinamos e aprendemos nos nossos dias.

Sophroniska continua repetindo que o pequeno Boris está curado; essa cura deve corroborar seu método; mas temo que ela esteja se antecipando um pouco. É claro que não quero contradizê-la; e reconheço que os tiques, os gestos contraditórios, as reticências da linguagem, praticamente desapareceram; mas parece-me que a doença apenas refugiou-se numa região mais profunda do ser, como para escapar ao olhar inquisidor do médico; e agora é a própria alma que foi atingida. 16

Os médicos, cientistas de um modo geral, não conhecem o ser humano. Como podem determinar que fulano ou ciclano estão curados? Ao analisarem somente características visíveis e mais expostas de seus pacientes, dão se por satisfeitos e aprovam o tratamento quando tais sintomas cessam de existir. Mal sabem que podem ter internalizado em seus pacientes, doenças que eles mal sabiam que existiam ou que já apareciam antes. O método Positivista na Psicologia e provavelmente Freudiano, tende a entender a psique humana tão bem delimitada, regrada, metódica, quanto um relógio suíço. A riqueza da subjetividade humana vai muito além da análise lógica do funcionamento de uma máquina mecânica qualquer.

Passados alguns dias, depois da volta de uma longa viagem, os três heróis da obra, acabam por descobrir que três crianças do colégio, entre eles George, o irmão de Olivier e Vincent, sobrinho de Édouard, estão por iniciar uma forte circulação de moedas falsas pelo mercado da cidade. Dão uma moeda falsa e pegam o restante do troco dividindo entre os três. Começam a fazer de modo muito intenso, o que acabou por vez, chamando as atenções das autoridades. Édouard é chamado pelo Juiz da cidade, pai de Bernard, que lhe conta o ocorrido. Édouard já sabia que as coisas não estavam andando bem.

Édouard volta a escrever em seu diário. Retoma o assunto do papel dos personagens e da obra de arte.

Os romancistas nos enganam quando desenvolvem o indivíduo sem levar em conta as impressões do ambiente. A floresta molda a árvore. Quão pouco espaço é deixado a cada uma! Quantos brotos atrofiados! Cada uma lança aonde pode a sua ramagem. O galho místico, na maioria das vezes, é ao sufoco que o devemos. Só se pode escapar para o alto. 17

Esta passagem pode nos remeter a análise da Sociologia. Ela também nos mostra uma construção cultural dos romancistas (de alguns deles) distante das Ciências e da realidade. Uma análise fictícia que tenta se passar como verdadeira: eis aí a falsa obra de arte. Por outro lado, quando algum dos galhos, brotos ou frutos se salvam, é distante da ditadura da Ciência fria e dura e da realidade que oprime e cega a todos. Nada escapa a opressão do coletivo e da realidade bruta. Nem mesmo o pensamento mítico, religioso, o imaginário coletivo e outros. Tudo se afunda na ditadura da razão do absoluto. O imaginário é castigado e determinado pelo coletivo que neste caso é opressor. Quando essa opressão chega a obra de arte, nada mais é possível fazer para inovar ou se re-inventar. O que está dado como definido ou padrão, é o que deve ser seguido. Não existem alternativas, somente aquilo que nos é dado goela abaixo. Novamente voltamos a questão anterior: se não temos de refletir e pensar sobre uma obra de arte, mas apenas de aceitá-la, de forma passiva, sem poder dialogar ou refletir sobre a mesma, trata-se apenas de consumi-la e posteriormente esquecer sua existência. Portanto, esta obra de arte que nasce nesta condição, acima afirmada pelo autor, não é mais obra de arte, é mercadoria que deve ser consumida, antes que perca o prazo de validade.

Pouco adiante, Édouard, em conversa com Bernard, também envolvendo a questão da obra de arte, define uma questão, que a meu ver, está repleta de contradição, mas transcrevemos aqui para nos certificar das palavras do autor:

Consinto que Paul-Ambroise tenha razão quando considera a inspiração como uma das coisas mais prejudiciais à arte; e creio também que só se é artista com a condição de dominar o estado lírico; mas é necessário, para dominá-lo, havê-lo sentido antes. 18

Ora, uma arte tão cheia de técnicas, de lógica, de métodos, regras, seria mesmo assim uma arte? Ou já seria uma Ciência? Neste caso, como desprezar a inspiração para se fazer arte, se é daí que se parte de algo mais espontâneo, íntimo, subjetivo do ser humano para produzir a própria arte? Não seria uma concepção de arte de Édouard muito dura, quase sem imaginação? Inspirar-se em algo, não é pré-condição do artista para a criação? Não é pré-condição para a invenção? Ao desprezar tal característica do homem, não estamos nos jogando numa espécie de construção artística, científica e da realidade que se aproxima da frieza do cientificismo e do positivismo e até da razão instrumental? O personagem não cairia em contradição neste momento com toda a argumentação aqui construída? Ou isso é proposital: demonstrar que todos estamos propensos a cair em contradições e paradoxos a todos os momentos, sobre todo e qualquer assunto?

Logo adiante, Édouard, em conversa com o Conde de Passavant, um mecenas, enrustido de intelectual na história, reafirma seu posicionamento e entendimento sobre o homem definindo o ser humano de modo tão baixo e vil, que nos relembra as mesmas concepções da Igreja Católica durante a Idade Média, sobre o ser humano. Se um burguês vê os homens assim, é porque traiu todos os ideias de sua própria classe, haja visto que todos os ideias da Renascença influenciaram as concepções do homem burguês de mundo e posteriormente do próprio Iluminismo. As asneiras do Conde de Passavant continuam e chegam ao cúmulo de defender os fortes, a aniquilação dos fracos e de forma bem direta, a própria eugenia, exterminando as raças fracas e permitindo o nascimento do homem forte ou da raça pura. É impossível não associar tais ideais e concepções de homem e de mundo com o nazismo que viria anos após o lançamento da obra. 19

Num outro diálogo com o Conde de Passavant e seu futuro secretário, este, o secretário, afirma que deseja fazer uma revista que retrate a obra de arte como algo delirante, fantasmagórico e distante da realidade de forma alucinada.

Se levarmos a bom termo nosso trabalho, e pode contar comigo para isso, não dou dois anos para que um poeta de amanhã se ache desonrado se alguém entender o que ele quer dizer. Sim, senhor conde; quer apostar? Serão considerados anti-poéticos todo o sentido, toda significação. Proponho operar a favor do ilogismo. 20

A arte e em especial parte de nossa poesia nos dias de hoje, em muitos momentos, são tão sem sentido, sem nexo, sem entendimento. Em alguns casos beiram a viagens alucinógenas de seus autores, algo difícil para se interpretar que não o próprio autor, em outros, textos sem rima, nexo, lógica, sem pretextos, objetivos, perdidos no ar e no tempo. Praticamente sem pés nos chão. Uma arte longe da realidade. Que portanto, dá a nos entender que se trata de uma falsa arte. Será por isso que Édouard odeia tanto o Conde? Em alguns momentos, parece que o Conde é uma espécie de interlocutor a altura do autor. É como se ele criasse um personagem para mostrar o seu contrário ou aquilo que ele mais detesta na obra de arte (ou na falsa obra). O Conde é o oposto em muitos momentos do que pensa o autor. Enquanto o Conde é um mercador da obra de arte, um mecenas, Édouard é um escritor verdadeiro, crítico da realidade e da própria situação com que passa a obra de arte em seu tempo. É como se colocássemos um personagem para defender o valor de troca na arte, portanto Passavant e o valor de uso da mesma, Édouard.

Novamente, de outro modo, usando outras metáforas, Édouard deixa claro como quer seus livros daqui para frente, em especial, este do qual escrevemos:

Os livros que escrevi até agora me parecem comparáveis aqueles lagos de jardins públicos, de contornos precisos, perfeitos talvez, mas onde a água cativa está sem vida. Agora, quero deixá-la correr segundo o declive, ora rápida e ora lenta, em meandros que me recuso a prever. 21

Esta primeira passagem nos remete a uma noção imensa de liberdade em enxergar este livro. Ele é livre e continuará sendo assim. Se as obras anteriores não tiveram tanta vida quanto esta, é justamente pela liberdade e pela forma como encara a construção de seus personagens que lhe permite pensar e agir dessa forma. E ele continua no mesmo sentido:

Para mim, que deixo o meu [livro] seguir à própria sorte, considero que a vida nunca nos propõe nada que, tanto quanto uma conclusão, não possa ser considerado como um novo ponto de partida. “Poderia ser continuado...” é com essas palavras que gostaria de terminar Os moedeiros falsos. 22

Neste trecho, o que parece é que o autor está também dando um entendimento de vida, de arte e de construção da obra de modo dialético. Podemos começar do zero sempre. Sempre que quisermos ou desejarmos, poderemos começar também de qualquer parte ou de qualquer forma. Retomar o fim ou corrigir seus rumos, a dialética nos permite tal liberdade de interpretar, de ir e vir, de tentar fazer melhor, sempre que possível ou de simplesmente tentar.

Édouard, sabiamente continua suas conversas, desta vez com seu secretário e amigo, Bernard. Acredita que é necessário uma vontade de mudar as coisas e não aceitá-las como elas são. É quase um espírito de jovem num senhor.

Não se descobre terra nova sem consentir em perder de vista, primeiro e por muito tempo, toda terra firme. Mas nossos escritores, tem medo de mar aberto; são apenas navegadores de cabotagem. 23

Bernard retoma o diálogo, em concordância com o escritor, assumindo uma psicologia e uma pedagogia de si mesmo que independe da existência da autoridade iluminada para viver e se educar. Assim como provavelmente ele dá vida a seus personagens e os permite viver livremente na obra e na imaginação dos leitores, ele também o pensa na vida das pessoas.

Este comportamento, tipicamente libertário na educação, talvez tenha servido para Gide entender, depois que visitou a antiga URSS, de que não se tratava mais de uma utopia das esquerdas, mas de um pesadelo vivo imenso a céu aberto para que todos vissem e se assustassem diante daquilo. Talvez por este e outros motivos, o autor tenha rompido com o Partido Comunista depois de sua viagem.

Foi então que me perguntei como estabelecer uma regra, pois que eu não aceito viver sem regra, e que tampouco aceitaria uma regra vinda de outrem.
- A resposta me parece simples: é encontrar essa regra em si mesmo; ter por objetivo o próprio desenvolvimento. [comenta Édouard].24

A ideia aqui retratada no diálogo entre Édouard e Bernard é que cada um de nós precisa encontrar suas próprias regras, leis, e disciplina dentro de si mesmos. Isso é ser anarquista e altruísta consigo mesmo. Isto é ser bom consigo mesmo.

No último capítulo da obra, Gide retrata a grande desgraça que ocorre com o pequeno Boris. Seus três falsos amigos, típicos valentões do colégio, querendo lhe pregar uma peça, resolvem fazer uma das já realizadas brincadeiras de mal gosto. Um deles pega uma arma de fogo e propõe aos quatro que façam um sorteio para quem será aquele que irá brincar de roleta russa na frente do professor em sala de aula. Logicamente, o nome de Boris é posto várias vezes dentro dos papéis do sorteio e naturalmente já se sabe o resultado disso. Boris é escolhido, por ser o mais fraco, o mais desajeitado e o mais sensível dos outros alunos. No dia da brincadeira de mal gosto, Boris recebe a arma com o restante dos alunos acreditando que a arma estava vazia enquanto o mais velho deles não liga a mínima para este detalhe. Resultado, Boris se encaminha para a frente do Professor no centro da sala e dá um tiro na têmpora sem chance de ser socorrido.

Estas mesmas crianças que trocavam moedas falsas no mercado, inclusive o pequeno George, sobrinho de Édouard e irmão de Olivier e Vincent, estavam entre as quatro que realizaram esta grande maldade. O choque, ou um dos muitos choques nos fim do livro, é que provavelmente ninguém esperava que crianças, seres considerados tão puros e inocentes, fariam tal maldade com um de seus colegas. Pois fizeram e ainda foram terríveis o suficiente para esconder a arma no local onde tinham pego e ainda fingirem tristeza na morte do pequeno Boris.

A maldade, o planejamento, a ação tipicamente maquiavélica (no mau sentido da palavra) em manter o teatro e a farsa, mesmo depois da tragédia, é o que importa para estes três pequenos que matam Boris. O que importa são os fins e estes por si só justificam os meios para fazê-lo: a diversão a todo e qualquer custo. A dissimulação dos pequenos é a anunciação de que algo pior estaria por vir. A ética da modernidade (ou será que isso é um modelo ético?) é a de que nada mais importa do que aquilo que se deseja, nem mesmo a vida humana.

É como que a quebra de paradigmas. Uma moeda é um modelo. Assim como a ética e a moral que todos (teoricamente) defendemos e praticamos, também são paradigmas. Quando crianças matam e o fazem de modo cruel, é como se provavelmente, Gide quisesse encerrar o livro dessa forma, como um meio de nos alertar diante da barbárie que ele já prenunciava no comportamento das pessoas em seu tempo. É como a chegada do inverno, em que tudo fica cinza, escuro, frio, quase morto. É a chegada ou a presença da Modernidade.

Considerações sobre a obra:

Vozes por toda a obra. Isso faz parte do livro. Por toda obra é um entra e sai de personagens nos diálogos, a todo instante, que é preciso muita atenção para não se perder e não se enganar nas falas de um e de outros. Acredito que esta seja uma representação da loucura que é a vida na modernidade. Todos falando ao mesmo tempo, sem se respeitar ou respeitar a si mesmos. Parecem etnias indígenas em que saem falando as dezenas e você não sabe como espectador recém chegado a quem prestar atenção. Se parece também com uma sala de aula de uma determinada Escola de crianças, adolescentes e jovens no Estado. Quando se pede a participação ou se tem dúvida sobre algo, todos juntos resolvem falar sem respeitar uns aos outros e não permitindo que ninguém entenda nada. É o retrato do caos que se encontra os homens.

Outra impressão ao finalizarmos a leitura da obra, é a de que somente no final, você entende o por que do nome do livro. Este é o mistério que ronda toda a obra. Por todo o livro ficamos a nos perguntar, mas porque este nome para o livro? Será que são somente os meninos que passam adiante as falsas moedas? Mas não é isso. O próprio Gide, na figura de Édouard, na página 209, praticamente na metade do livro, não tem a menor idéia do porque o livro terá este nome, mas ele já o escolheu.

Outra impressão importante da obra é que por mais avançada que esteja sua leitura do livro, você não sabe do que o livro trata especificamente. Num capítulo ele trabalha a questão da crítica a falsa obra de arte, no outro a critica a modernidade, no outro, uma crítica aos costumes, preconceitos, religiões, a alienação e de repente, volta a todos eles de outra forma. É como se o autor preparasse uma obra para nos deixar sem chão, perdidos, perplexos. O livro é como aquele sonho que muitos de nós tem, em que caímos num buraco escuro sem fim e não paramos de cair até que acordamos completamente assustados.

O fim da obra chega a ficar morno, num diálogo sem sal, chocho, e de repente, vem o ato violento que nos faz entender todo o livro, o título e o objetivo do mesmo. É aterrorizante o fim do livro. É impactante. Desconcertante. Ao mesmo tempo que é de uma maldade e de uma covardia para com o pequeno Boris, que durante a obra é retratado como garoto tímido, sensível, bom. Não dá para não se identificar com Boris e ficar triste e chocado com seu fim. Quem é que nunca se viu vítima dos valentões proto-fascistas das Escolas e nos Colégios? E de repente, ao vermos Boris morrer daquela forma covarde, é como se fosse cada um de nós passando pelo mesmo.

É como se Kafka, Proust, Gide, Becket e outros escritores modernos, ganhassem o papel de Sócrates, quando Platão escreve o Mito da Caverna, dando a entender que aquele único prisioneiro que consegue se libertar e ver a luz, seria no fundo uma metáfora da figura de Sócrates. Estes escritores da Modernidade são como os prisioneiros da caverna que conseguem se libertar das correntes e ver a luz do sol. Como se sabe, na história de Platão, um dos presos tenta avisar os outros que existe uma vida diferente lá fora, um outro mundo, algo novo a ser descoberto. Logo que inicia sua tentativa de acordar os demais, é tachado como louco e sem seguida morto. O papel destes escritores é mostrar a humanidade que está acontecendo algo, que a pós-modernidade nos cega a todos e nos mantém ignorantes dentro da caverna. O papel destes escritores é o de tentar mostrar às pessoas o que acontece a sua volta, para que elas, de alguma forma, tomem uma atitude em suas vidas e mudem a realidade em que elas vivem.

E por fim, Gide foi um grande advinho do que ocorreria com a humanidade alguns anos depois da publicação de sua obra: a anunciação da barbárie nazista e fascista. O autor já demonstra em diversas passagens do livro a aceitação de comportamentos tipicamente covardes (e porque não fascistas) no cotidiano das pessoas, anunciando os rumos dos novos tempos. Gide nos mostra a barbárie a varejo, Hitler no atacado.

1 Gide, Andre. Os moedeiros falsos. Estação Liberdade. São Paulo, 2013. Pg. 79.

2 Op. Cit. Pg. 83.

3 Op. Cit. Pg. 83 e 84.

4 Op. Cit. Pg. 108.

5 Op. Cit. Pg. 108 e 109.

6 Op. Cit. Pg. 117 e 118.

7 Op. Cit. Pg. 125.

8 Op. Cit. Pg. 131.

9 Op. Cit. Pg. 136.

10 Op. Cit. Pg. 174.

11 Op. Cit. Pg. 180 e 181.

12 Op. Cit. Pg. 224.

13 Op. Cit. Pg. 197.

14 Op. Cit. Pg. 207.

15 Op. Cit. Pg. 224.

16 Op. Cit. Pg. 228.

17 Op. Cit. Pg. 297.

18 Op. Cit. Pg. 338.

19 Op. Cit. Pg. 351, 352 e 353.

20 Op. Cit. Pg. 355.

21 Op. Cit. Pg. 357.

22 Op. Cit. Pg. 357.

23 Op. Cit. Pg. 375.

24 Op. Cit. Pg. 375.