sábado, 9 de fevereiro de 2019

Resenha da obra "Cândido ou o otimismo" de Voltaire.


Cândido ou o Otimismo – Voltaire.
Editora L&PM Pocket. Tradução de Roberto Gomes. Porto Alegre, 1998.
Introdução:
Obra de um senso de humor e de uma crítica social sem igual. Presença de um sarcasmo e até de um humor negro diante de diversas situações desastrosas e catastróficas no cotidiano de Cândido, Pangloss e amigos (as).
Trata-se de um jovem, educado pelo Filósofo Pangloss, discípulo de Leibniz, também Filósofo Idealista. Cândido é pego pelo pai da jovem Cunegunda aos beijos e abraços com nosso ator principal e é expulso de casa pelo pai da moça. Sai vagando mundo afora e conhece as mais horripilantes desgraças que uma pessoa pode ter. Mas ao mesmo tempo, em sua jornada de conhecer o exterior da vida do Castelo onde morava na Bulgária, Cândido descobre lugares e pessoas maravilhosas. Acaba descobrindo um local praticamente secreto da sociedade Européia até aquele momento que é chamado de El Dorado, onde o excesso de ouro é tão grande que o minério é encontrado na lama e serve de diversão para as crianças. Eldorado é um lugar desconhecido pelos Europeus e muitos anos a frente em Ciência e tecnologia do que todo o resto do mundo. É um local onde não existe cobiça, os homens se respeitam e não existe violência. A noção de Eldorado se assemelha a obra Utopia de Thomas Morus que descreve o verdadeiro paraíso na terra. As influências deste último ao Francês são inegáveis. Com o passar da obra, percebe-se que Eldorado fica na região do Peru e, é uma das últimas cidades que sobraram do Império Inca. Pelo fato de ter ficado cercada de montanhas, as Cordilheiras dos Andes, nunca havia sido descoberta. Voltaire não sabe, mas ao descrever Eldorado, sua localização próxima, sua cultura e sua gente, estava falando de Machu Pichu, que seria descoberta cerca de 150 anos depois de publicada esta obra em 1758.
O desenrolar da obra:
Voltaire também utiliza a obra para atacar seus pares, intelectuais franceses que para o autor eram muitas vezes pessoas arrogantes ou mentirosas além de uma série de outros adjetivos que podem variar de um a outro. Um dos Filósofos que é criticado durante várias vezes na obra é o próprio Leibniz. Para este Filósofo, tudo o que acontece no mundo é vontade de Deus ou ocorre por acaso. Nada tem uma causa específica.
Em uma passagem no Capítulo Sexto, o autor faz uma crítica a estrutura da Ciência na Universidade, dando a entender que a Ciência, na busca por suas respostas, se assemelha a Religião. Nietzsche provavelmente adoraria tal passagem.
A Universidade de Coimbra decidiu que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo baixo, numa grande cerimônia, é um segredo infalível para impedir a terra de tremer”.1
Com o decorrer da obra, a impressão que se tem é de que Voltaire está fazendo uma crítica ao barbarismo das civilizações muçulmanas, cristãs e judaicas, com todas elas sendo sádicas e monstruosas ao mesmo tempo: nenhuma é mais santa que a outra.
No capítulo XVI, há uma discussão entre uma etnia de índios antropófagos e Cacambo, amigo fiel de Cândido que o conhece em Buenos Aires em uma de suas muitas fugas. O inacreditável neste diálogo entre índios paraguaios, Cacambo e Cândido, é a utilização dos argumentos Contratualistas em hilária crítica as teses destes autores e a própria falta de civilidade dos Europeus (que se dizem ou defendem as teorias dos autores Contratualistas, mas na prática vivem sob o Estado de Natureza Hobbesiano).
Poderão de qualquer forma nos comer caso descubram que eu menti. Mas, se eu lhes disser a verdade, conhecem bastante bem os princípios do direito público, os costumes e as leis, para não nos conceder clemência.”2
Esta passagem é pura gozação com a sociedade dita civilizada da Europa e de outras nações. Posteriormente, como prova do dito acima, Cândido encontra o irmão de Cunegunda no Paraguai. Ele se tornou Jesuíta, latifundiário e explorador de índios e negros.
Logo adiante, os dois amigos são soltos pelos índios canibais e conhecem a América caminhando. Chegam a um lugar que não conhecem direito o Idioma, até Cacambo se lembrar que se trata da mesma língua que ouvia de seus pais quando pequeno. Era a cidade perdida de Eldorado. Um país onde não se valorizava o ouro e as pedras preciosas pois, existiam em tal quantidade na natureza que ninguém se importava com tais minérios. Para Cândido, parecia ser um lugar de pessoas muito educadas, ao contrário da Bulgária. E ele estava certo. Ao chegarem, foram apresentados ao Rei que os tratou com imensa cordialidade. Também lhes ofereceram moradia e uma vida melhor para ficarem em Eldorado, mas, fascinados pela “lama” dourada do local, ou seja, a abundância de ouro e outras pedras preciosas, Cândido e Cacambo, viciados na possibilidade de enriquecerem, pediram para sair da cidade com camelos e mais camelos de “lama” guardados em bolsas. Este é um comportamento da cobiça humana presente até mesmo no mais puro dos homens. Voltaire talvez queira quebrar um pouco o mito do homem bom ou puro. Nem todos seres humanos são assim, bons como anjos na terra.
Em outra passagem, fica claro a tentativa do autor de quebrar essa idéia Cristã de que tudo anda bem e assim ocorre porque Deus quer ou a sorte ou o destino assim o deseja. Nem tudo anda bem, nem tudo ocorre ao acaso, sempre existe uma causa para uma conseqüência e por mais que pensemos que estamos na desgraça pura e no fundo do poço, sempre haverá alguém em piores condições do que nós. Talvez esta seja uma das principais razões desta obra de Voltaire. Demonstrar que nunca a desgraça própria será maior do que a alheia e de que estamos num mesmo barco; que os problemas que aflingem a um, podem aflingir a todos.
Outro detalhe importante de se perceber na obra é um retrato da Europa naquela momento, posterior a Revolução Inglesa e próxima da Revolução Francesa e Americana. Mesmo depois do avanço do Iluminismo, da Ciência, da Revolução Industrial, a Europa continuava o mesmo berço da barbárie humana.
No capítulo XXII, o autor faz uma série de críticas a sociedade francesa, declarando-a de cínica, hipócrita, anti-ética, imoral. Quase todo o capítulo se assemelha com a realidade do povo brasileiro e com o jeitinho brasileiro. Aparentemente é uma crítica a sociedade européia daquele momento, principalmente quando se faz ênfase ao educado povo de Eldorado em contraposição ao europeu.
Por toda a obra é nítida a crítica a Leibniz. A impressão em alguns momentos é que, o papel de Cândido (e a obra em si), não se trata apenas de uma utopia ou desabafo literário de Voltaire ao papel, mas de uma obra com o firme propósito de criticar a Filosofia de Leibniz e sua descrença na idéia de causa e portanto da causalidade. Sabe-se posteriormente que Hume irá quebrar toda a lógica desta filosofia pois irá provar que não podemos acreditar em nada do qual não sabemos a causa e as origens afim de provar cientificamente o que sabemos e o conhecimento que construiremos no futuro. Por isso de sua revolta com a posição de Pangloss e de Cândido, por serem extremamente dóceis, conformados com as desgraças que lhes ocorrem na vida pois acreditam os mesmos que sempre se trata de algo que deus imaginou e orientou aos mesmos. Esta também é uma crítica comportamental ao conformismo social de boa parcela da sociedade que sempre acredita que o melhor acontecerá ou triunfará em suas vidas não percebendo que se não tomarem posicionamento a respeito do mal que lhes inflige, serão prejudicados seriamente a respeito destes.
Ao término da obra, todos os sobreviventes estavam exaustos de seus trabalhos, tinham perdido todo o dinheiro que trouxeram da América, reclamavam da vida odiosa a que chegaram. Consultaram então um religioso que lhes deu a seguinte lição: trabalhar cura todos os males e nos faz aceitar melhor a realidade. “Trabalhamos sem raciocinar”3, disse Martinho, o Filósofo a Cândido. Esta talvez seja parte da moral da obra. O trabalho alienado (duplamente falando, o material e o da consciência) incentivado pelo protestantismo como única forma de enriquecimento, é a fórmula para a felicidade. Só assim deixamos de pensar na realidade de nossas vidas e acabamos por enfrentar a realidade nos escondendo dela.
Esta é uma forma ácida de dizer que enquanto continuarmos a tapar o sol com a peneira, seremos seres conformados com a realidade que nos aprisiona e nos escraviza em nossos cotidianos. Voltaire está no fundo nos pedindo que façamos alguma coisa, que mudemos a realidade antes que ela nos mude a fundo e nos impeça de desejar a mudança.
1 Op. Cit. Pg. 24.
2 Op. Cit. Pg. 60.
3 Op. Cit. Pg. 131.