sábado, 3 de dezembro de 2022

Camus e o estrangeiro de nós mesmos...

 

O estrangeiro – Albert Camus:


Uma das grandes obras da Literatura mundial e do próprio escritor Argelino, Albert Camus. Leitura esta realizada sobre uma edição da Editora Abril de 1972. A obra é dividida em duas partes, a primeira apresentado o personagem principal da obra e sua vida acabando no assassinato de um inocente. A segunda parte se inicia na sua prisão, julgamento e nos trâmites do processo até sua morte.


O próprio livro começa com a perda completa da noção de tempo por parte do principal personagem, o Sr. Meursault. Ele diz que a mãe morreu hoje, mas em seguida se corrige não sabendo ao certo o dia do ocorrido. Quem em sã consciência não lembra a data recente da morte da mãe? Isso é egoísmo puro ou sinal do comportamento do homem na modernidade em relação ao tempo?


Nas páginas que se seguem, o narrador chega até o asilo onde hospedara sua mãe e lá vê sua velha cercada de outras velhas e velhos do asilo. Alguns choram e o filho desalmado demonstra irritação pelo choro alheio e pelas caras e presenças dos amigos de sua mãe. Tal como se a presença de todos lhe incomodasse. Depois, era o silêncio das pessoas que o incomodava. É difícil entender este indivíduo. Um sentimento de frieza ronda os sentimentos do Sr. Meursault. Quando, durante o enterro, lhe perguntavam quantos anos tinha sua mãe, ele não sabia ao certo dizer.


Ao término de todo o processo fúnebre, ele não via a hora de deixar o local e partir de volta para a sua cidade e sua vida. Foi ao enterro da própria mãe mais como uma obrigação legal do que como a despedida de uma pessoa querida. Fica claro quando ele estava mais preocupado em deitar e dormir no ônibus durante as doze horas de viagem de retorno. Isso também quer dizer que existe uma perda da experiência consigo, com os outros e com o mundo e a própria vida. Ele leva a vida de modo completamente isolado.


A segunda parte do livro começa com o retorno do nosso personagem a sua vida pacata e os resmungos do patrão pelo fato de seu empregado ter ganho alguns dias a mais de descanso pela morte da mãe. O que dá a entender é que o patrão sempre será invejoso, maldoso, é da sua personalidade querer o que é dos outros. A própria mais valia é uma prova da retirada, roubo, expropriação do resultado do trabalho alheio por parte do patrão. É pra isso que existe esta figura abominável na sociedade. E o personagem parece não pensar nada a respeito.


Adiante, observando as pessoas voltando do passeio de fim de semana, domingo, para suas casas, diz sobre o comportamento de um rapaz: “Entre eles, os rapazes de havia a pouco tinham gestos mais decididos do que de costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras.1 Ele até consegue perceber a mudança nos hábitos e no cotidiano das pessoas, mas se torna incapaz de ver que se trata de manipulação do que o Filósofo Adorno chamaria de “Indústria Cultural”, ou seja, que o jeito, a imaginação, toda a subjetividade do homem moderno, no capitalismo, estava marcada pelas regras que o capital impunha sobre o homem.


Esta segunda parte finaliza com o tédio do fim de domingo, para o personagem, de uma solidão e de um solteirão desejando manter a privacidade a todo custo, mesmo que se afastando das pessoas. Assim foi seu comportamento durante a semana posterior da morte de sua mãe em que ele se fechou para não dar explicações maiores sobre o falecimento. E a rotina e o cotidiano da “vida lesada” destruindo a própria vida.


No terceiro capítulo, se inicia com um pedido disfarçado de desculpas do patrão com o Sr. Meursault. Uma pequena pergunta, como se tivesse alguma curiosidade sobre a vida do empregado, disfarçando seu ódio e desprezo pelos operários e funcionários de sua empresa. Sinal de que o patrão é sempre hipócrita, só não vê quem não quer.


Nosso personagem relata a vida de um vizinho, Sr. Salamano, que sempre maltratava seu próprio cão. Não tinha a menor paciência com o animal. Várias vezes ao dia, gritava com o mesmo, agredia-o e assim passavam o tempo. A forma como Camus relata a semelhança de um e de outro, não dá para não lembrar de Kafka e “A Metamorfose”, quando o Sr. K se transforma num animal.


À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se.”2


A desumanidade do homem com o animal, demonstra o quanto o homem se tornou um outro animal, tão irracional quanto o primeiro, o agredido. Nisso, vemos a semelhança com a leitura de Kafka. Ambos parecem ter percebido muito bem, as características do homem na modernidade.


Ao término do terceiro capítulo, ele faz a amizade com um vizinho, marginal, chamado Raimundo, com passagem pela polícia, agressor de mulher, que arrumaria encrencas com parentes de sua ex-amante. São as brigas que este vizinho arrumará que o fará assassinar um destes e o levará a prisão. Ao comer na casa do novo amigo, ele acha que está aproveitando da situação para “filar uma bóia”, mas na verdade está começando a se enrolar com um cara cheio de problemas.


No quarto capítulo, aparece mais nitidamente a figura de Maria, uma ex colega de trabalho que se apaixona por nosso personagem e que o mesmo não liga a mínima, tratando-a como objeto constantemente. Maria diz que o ama e o Sr. Meursault não diz nada, nunca, sempre deixando a triste. Mesmo assim, ela quer se casar com ele.


Ao término deste quarto capítulo, dialogando com o Sr Salamano, eles se despedem:


Olhou para mim, em silêncio. Depois, disse: -Boas noites. - Fechou a porta e ouvi o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, pelo estranho barulho que chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei por que, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte precisava me lavantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar.”3


Ele lembrou da mãe, talvez a única e última companheira que ele, assim como o vizinho, não haviam dado o devido amor e respeito a seus companheiros. Um com o cão e o outro com a mãe. Ao mesmo tempo em que é frio com as pessoas, vê-se que o cotidiano lhe atropela a vida e lhe impede de pensar a respeito de si e dos seus sentimentos. São manifestações do homem na vida da modernidade. O impedimento do pensar, a vida que atropela, o filme, a TV que nos manda adiante sem pensar. Talvez esta seja a grande regra da vida nas sociedades capitalistas do século XX em diante: não vivemos para pensar, refletir, dialogar, existir, mas para consumir, tudo e a todos desesperadamente e desenfreadamente, o mais rápido possível que puder. De preferência, de modo instantâneo.


Essa passagem também serve para nos mostrar que o seu vizinho, o Sr. Salamano tinha dor na consciência ou a consciência pesada pelo mal e desprezo que havia feito ao seu cão. Já o Sr. Meursault não. Não tinha um pingo de arrependimento pelo que fizera ou pela vida fria e egoísta que levava. Nem uma lágrima pela mãe ele derramara depois da morte da mesma.


No capítulo V, o Sr. Meursault demonstra total apatia com a vida. Como se diz no ditado, “pra ele, tanto fez, como tanto faz”. Não havia como mudar de vida e todas as vidas se equivaliam, ou seja, talvez não valessem nada.4


É neste capítulo que Maria lhe pede em casamento: “Respondi que tanto me fazia, mas que de fato se ela queria casar, estava bem.5


Depois de uns instantes em silêncio, Maria murmurou que ele era uma pessoa estranha. E novamente, ele não disse nada.


Em novo diálogo com o vizinho, percebe-se tal estranheza ou seria frieza do Sr. Meursault em relação a mãe. Ele diz que encarava com naturalidade o envio da mãe ao asilo e argumentava se desculpando que não tinha como sustentar a velha ao seu lado. O vizinho, Sr. Salamano, se preocupa e se mostra triste pelo fim trágico da mãe. Meursault acha natural tal ato.


Foi o próprio narrador que colocou a mãe no asilo sem arrependimento e com a consciência tranquila de quem cumpriu o seu dever. Assim também agiram o alto e baixo clero nas forças armadas do nazi-fascismo ao exterminarem as minorias nos campos de concentração na II Guerra.


É no capítulo seis que o Sr. Meursault mata um dos Árabes por achar que este estivera armado e assim ele dispara quatro tiros que acabam com a vida de seu oponente. Termina aí a primeira parte da obra.


Nesta segunda parte, os investigadores querem mostrar que a personalidade do Sr. Meursault é de uma frieza imensa, tentando desde o princípio inputar-lhe a culpa pelo assassinato como algo natural de sua conduta e não algo trágico. Neste interrogatório, ele responde: “Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo e que era difícil dar-lhe uma resposta.6 Temos aqui um irmão gêmeo de Eichmann? Hannah Arendt diria que sim…


Este é um atestado de burrice ou de preguiça mental ou de alienação absoluta sobre si e sobre a vida. É a perda da capacidade de pensar por si mesmo. Kant nos diria que este é um caso clássico de indivíduo que perdeu completamente a autonomia e a capacidade de viver por si mesmo, não guiado pela razão.


Lá pelas tantas, em diálogo com o Juiz do caso, este lhe pergunta se ele acreditava em deus, e o réu responde que não, com uma prontidão que assusta o juiz. Percebe-se nessa hora a perda de todas as referências para este homem. Ele não tem ética, moral, religião, deus, nada que balize sua vida. Só restava a Lei para isso. Perda de todas as referências, isto é retrato do homem na Modernidade.


Adiante, outra demonstração de que ele se habituara a tudo, mesmo a maior das injustiças, estar preso. A acomodação é um passo para a alienação do corpo e da consciência. Mesmo durante o interrogatório, algumas perguntas que lhe eram feitas, mesmo que discordasse da indagação, ele aceitava ou acatava, simplesmente para sair daquela situação e voltar para sua cela. Eis um exemplo de alienação e acomodação.


Há um entendimento sobre a noção de tempo na modernidade que fica bem explícito nos nossos dias:


Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos, que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam sentido.7


Esta passagem mostra o quanto o tempo é dividido de modo tão artificial, em dias, horas, minutos, segundos, décimos, centésimos e milésimos de segundo que não fazem sentido algum para quem está fora dessa realidade louca que é a “vida lesada” no capitalismo. Os nomes dos dias perdiam o sentido pois esta vida excessivamente regrada não fazia sentido para quem tem o tempo praticamente livre (ou não). Isso nos mostra que a vida, se vivida de modo natural, fora da lógica do capital, não seria balizada por esses mecanismos tão frios de mensuração do tempo. A vida seria vivida, tempo após tempo e não cobrada no alucinado tempo do relógio e das máquinas com suas imposições sobre a vida do homem na sociedade do capital. Os tempos, seriam outros.


Logo adiante, também há uma passagem, que demonstra o quanto o homem nos nossos tempos, não se conhece mais ou não se reconhece mais. Quando olha no reflexo da bacia d'água, ele se estranha, tenta sorrir e não vê diferenças ou mudanças de sua face triste e severa. Ao mesmo tempo, ele, de repente, percebe estar falando sozinho, quando escuta o som da própria voz. Daí também percebe que a tempos falava só e que não distinguia mais o som que saia de sua boca. Percebe que se perdera de si ao não reconhecer mais a voz e a si mesmo. Outro diálogo com Kafka. Gregor também não se reconhece mais ao se olhar no espelho, apenas vê o animal que se tornou.


O estranhamento de si e do mundo, a perda da crença em deus ou em qualquer outra referência ética e moral nos nossos dias, nos torna seres descontentes, entediados com a vida. Desejosos do imediato, “do aqui e agora” e da ausência contínua de reflexão, nos tornamos os animais que os artistas continuamente tendem a nos alertar.


Adiante, Camus também faz do julgamento por que passa o Sr. Meursault, uma crítica ao Positivismo Jurídico. Demonstra de modo duro, o quão desumano é a justiça e seus procedimentos para chegar a um veredito sobre um determinado crime. Esta parte é bem criteriosa sobre a crueldade com que se tratam as pessoas que caem no sistema penitenciário e criminal. Em praticamente nenhum, ou quase nenhum momento, foi dada a palavra para o réu se defender. Pelo contrário, quanto mais distante das emoções, mais operava a razão. Dito de outra forma, quanto mais isento fosse o julgamento, mais preciso seria o resultado. Tal como numa conta de matemática, onde se calcula que dois mais dois seriam quatro e fim de argumentos. Este é o Direito, que se pretende como Ciência. Mais uma prova dos desmandos do positivismo nas diversas áreas do saber.


Dessa forma, a vida das pessoas se torna um viver sob o fio da navalha. Se errar, enfrentará a espada da (in)justiça ou a balança da deusa Temis, que de equilibrada e imparcial, não existe nada. Camus nos faz entrar na pele do Sr. Meursault: e se fosse eu ali? O que faria? Como reagiria? Como se sentiria? Seria capaz de matar um homem, diante do medo e do pavor de ser morto? A justiça seria capaz de entender esse lado do réu? Ele é culpado ou inocente? Cabem tantas perguntas aqui feitas pelo nosso autor. Mas a que mais me preocupa no final da história é: o Sr. Meursault é vítima ou vilão?


Durante seus devaneios na prisão, ele imagina que poderia estar lá fora, do lado contrário que está agora, não como prisioneiro mas como espectador do julgamento e da possível execução de um assassino. E ele vibra com a ideia. Sente subir pelo corpo um ódio imenso. Demonstra o autor para nós mesmos que é fácil desejar o mal para o outro sem se indispor ou se colocar no lugar do outro. É como se Camus estivesse nos dizendo que não só o protagonista, mas o ser humano é falso, não tem empatia, julga pelas aparências, é superficial na sua vida.


A coisa, o processo, inquérito, julgamento, sentença, etc, são feitos para dar a impressão de que são perfeitos. Mas os ritos são todos falhos. Justamente por que se pretendem exatos, infalíveis, como a matematização ou a objetivização do mundo. Camus está criticando o “maquinismo” que toma conta do mundo, inclusive da justiça em seus trâmites burocráticos. E é preciso que toda a encenação, todo o teatro funcione realmente para dar a impressão para a sociedade de que a ordem se manteve e que a justiça foi feita. Todos devem participar e colaborar com os rituais macabros da justiça. Porém, para nosso personagem, trata-se de injustiça e não justiça.


Novamente, o protagonista irá criticar o “maquinismo” que esmaga seus sonhos e a subjetividade alheia. Critica forte ao homem e a forma como a vida é conduzida no século XX. Tudo depende da máquina ou é feito de acordo com as ordens da mesma. E podemos entender a “máquina”, não apenas como a guilhotina que ele reclama, mas a todo o sistema que aprisiona e oprime o homem.


Adiante ele volta a se revoltar com a forma como a vida é levada. Afirma que não há valor na vida. “Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida.8” Parece haver um sentimento de desprezo total pela vida humana, pela sobrevivência, pela própria raça humana. Como se houvesse uma obrigação de pertencer a este grupo de animais. Ele continua a agir de modo acomodado e alienado. Perdeu o amor pela própria vida.


Pouco depois, num diálogo que o protagonista começa a ter com o capelão, este lhe diz que todos nós somos condenados a morte, no intuito de confortar ou de abrir uma conversa com o Sr. Meursault que tanto ignorava o religioso. O condenado discorda, dizendo que não era a mesma coisa. Mas fica uma dúvida sobre o propósito do autor na obra: a existência humana é uma condenação a morte? Viver esta vida é o mesmo que já estar condenado? Não é o mesmo que já estar morto? A impressão que se tem é a de que o personagem concordaria com tal hipótese.


O capelão pergunta então ao criminoso se ele conseguiria viver de modo tão duro, não confessando, deixando de acreditar em deus ou na vida após a morte e sem esperança. Ao que o protagonista responde afirmando que sim, como se fosse algo natural das pessoas a descrença em deus ou, como dizem muitos, “em uma força maior” neste momento da condenação, próximo da hora da morte. Percebe-se nesse caso que o capelão, assim como provavelmente todo religioso, é um fraco, ao ponto de não conseguir enfrentar a realidade e a verdade. Por isso a crença em deus ou numa vida após a morte. Trata-se sempre de conforto para o condenado ou de tentar se enganar ou ser enganado. Algo que o Sr. Meursault discorda.


Ele afirma que a certeza do religioso sobre as religiões, das almas, espíritos, anjos, deus, da vida após a morte, eram vazias de sentido e sem fundamento. Parecia que o capelão já estava morto em vida. Portanto, diante dessas desconfianças, que moral tinha um padre nessa situação? Que experiência tinha de vida um sujeito desse para afirmar com tamanha verdade tais absurdos? E a resposta de nosso personagem é a de que ele só podia provar a sua própria existência, pois pensava, logo deduzia que existia também.


E, em um momento de fúria, o condenado agarra o capelão pelo colarinho e lhe dá uma lição de vida, lhe indagando onde estaria a justiça ao condená-lo a morte? Onde estaria a justiça quando não podemos mudar nossos próprios destinos? Por que ele teria sindo condenado e não outra pessoa? Dramas e sentimentos humanos de injustiça tremenda que faziam o capelão se calar diante das maldades. Para o Sr. Meursault, todos morreremos algum dia, mas é certo esta condenação prévia a esta vida? Está certo ser condenado a viver de modo tão desumano esta triste e morta vida? Onde está a razão de se viver?


Ao término, fica a impressão de que o protagonista aceita novas experiências com a vida. Se abre pro mundo. Entende como ele e as pessoas são. Ou se engana a respeito disso. Ou ainda, pode estar sendo cínico ou sarcástico a respeito. Quando diz que entende o esforço da mãe por recomeçar uma nova relação na velhice, compara esta situação a aceitação de que a morte é inevitável e que ele está pronto a reviver tudo novamente.


Por outro lado, quando ele diz que se abre a “doce indiferença do mundo9, ele está dizendo que o homem não se importa mais uns com os outros, tal como ele. E assim o diz quando se sente parecido com o mundo. Um é reflexo do outro. O homem que se desumaniza é o mundo desumanizado. Mas logo em seguida se engana ou quer enganar (ou está sendo cínico) ao dizer que o mundo era fraternal, assim como ele e que sempre fora feliz e que mesmo naquela situação ainda o era. Mentira? Loucura? Desilusão? Depressão? Cinismo? O que ele quer dizer? Ou se trata de alienação mesmo e desconhecimento de si e dos seus sentimentos?


Este comportamento ao término da obra quer nos mostrar o quanto o cinismo ou a tristeza estão arraigados ao comportamento do homem em nossos tempos. Também parece querer nos mostrar que o homem se odeia. Quando deseja que hajam muitos espectadores na hora da execução e que estes vibrem com sua morte recebendo-o com gritos de ódio, ele demonstra o quão falsa e vazia são as relações entre os homens hoje, como em seu tempo. Deseja também provocar a fúria das pessoas com a desculpa de que se sentiria menos só. Pois provavelmente assim estaria acompanhado. Mas suas ações na prisão, ao lado do padre, durante o julgamento, dizem o contrário, “antes só do que mal acompanhado”.


Sentimentos registrados durante e depois da leitura:


Existe um diálogo forte entre Kafka e o autor. A tensão existente antes da morte, na prisão, durante o julgamento. Há uma confusão também em tentar entender o Sr. Meursault. Por um lado ele parece vítima do sistema penal, jurídico, econômico, mas por outro, ele parece tão alienado, tão artificial, egoísta, mesquinho, tão frio e duro com os outros, tão interesseiro, que não dá para olhar para o personagem apenas com os olhos de vítima. Ele em alguns momentos também é vilão.


Ele demonstra completa alienação em relação a si mesmo, aos seus sentimentos, anseios, desejos, até mesmo diante de sua intimidade, nada importa, o que tiver, está bom, não tem problema. Ele parece derrotado moralmente, intelectualmente e psiquicamente. Não conhece política, não lê os jornais, nem livros, nada. Não tem uma vida cultural e nem se esforça para tê-la. É um perdido no mundo. Isto fica registrado em comportamentos nítidos durante vários trechos do livro.


Na morte de sua mãe, o que deu a entender, e que ele não via a hora de sair daquele fim de mundo para voltar a sua rotina besta, ao trabalho e a sua vidinha medíocre. Ele não se alimenta nada bem. Pode ser pelo fato de ser proletário, mas também por desleixo. Aliás, isso fica claro na forma como se veste, vive, dorme, nos seus hábitos em fumar, comer mal, quando come, entre outros.


Podemos dizer que o Sr. Meursault também é o que se costuma chamar de “maria vai com as outras”. Foi preso e perdeu a vida para acompanhar dois valentões malandros que pouco se importavam com ele. Já dizia outro ditado, “papagaio que acompanha morcego acorda de ponta cabeça” ou “passarinho que come pedra, sabe o fiofó que tem”. Não existe como não desconfiar das ações que se toma. “Quando se planta vento, colhe-se tempestade”, já dizia também outro ditado. Ele nunca se preocupou consigo mesmo e por isso acabou dessa forma.


Considerações finais:


Acredito que a ideia de estrangeiro, nome dado ao título do livro, esteja associada diretamente ao protagonista. Mas nos fundo, é um retrato de nós mesmos. Camus, fala de si, do personagem, mas de nós também.


Um estrangeiro não é daqui. Não é deste lugar. É uma pessoa estranha. Com hábitos diferentes, um jeito de ser e estar diferente do das outras pessoas no mundo ou ao seu redor. É uma pessoa de outro mundo. Como alguém pode ser tão indiferente com os outros e consigo mesmo? É possível uma pessoa assim? Isto é um ser humano ou um ET? É possível alguém ser tão frio desse modo? E tão alienado de si e dos seus sentimentos e consciência de mundo? De onde veio esta pessoa? Talvez sejam perguntas que Camus queira nos fazer a respeito do protagonista, provavelmente provocando a nós mesmos. Será que não somos como o Sr. Meursault? Até que ponto não nos assemelhamos ao mesmo? Será que ele é mesmo um estrangeiro ou um diferente ou tão distante assim de nós mesmos ao ponto de nos chocarmos com seu ato macabro de matar um homem? Seríamos capazes de fazer o mesmo? Por que não? No fundo, somos ou não somos tão indiferentes e frios uns com os outros no nosso cotidiano? Tal como o protagonista.


Então, a ideia (ou o título da obra) de um estrangeiro, é como uma provocação. É uma metáfora de nós mesmos. Não existe coisa alguma de estrangeiro. Ele nos parece estranho, mas é por que não olhamos para as profundezas de nosso ser. Se nos olharmos detalhadamente, perceberemos o quanto nos parecemos com o mesmo. E assim, o estrangeiro deixa de ser o estrangeiro. Tal como Kafka nos assemelha a barata, os diretores de alguns filmes de terror nos assemelham a zumbis que comem cérebro, ou a alliens predadores, ou a robôs exterminadores, Camus nos metamorfoseou em estrangeiro, para que percebêssemos que o Sr. Meursault não tem nada de distante de nós mesmos. Somos nós nos olhando no espelho.

1Camus, Albert. O estrangeiro. Editora Abril, São Paulo, 1972, Pág, 35.

2Op. Cit. Pág, 40.

3Op. Cit. Pág, 56.

4Op. Cit. Pág, 58.

5Op. Cit. Pág. 59.

6Op. Cit. Pág. 85.

7Op. Cit. Pág. 104.

8Op. Cit. Pág. 144.

9Op. Cit. Pág, 154.

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