sábado, 9 de abril de 2022

A morte de Ivan Ilitch – Lev Tolstói. Uma pequena resenha...

 

A morte de Ivan Ilitch – Lev Tolstói. Coleção grandes nomes da Literatura. Folha de São Paulo. 2016.*1


Obra clássica da literatura russa. Tolstói consegue expressar os desejos, decepções e desilusões de vida do advogado e funcionário público Ilitch. Este se casa com Fiódorovna, do qual possui uma vida que mais se parece a uma guerra. Casou por conveniência da sociedade, sem amá-la. Teve filhos com a mesma e desgraçou sua vida por seu egoísmo desenfreado e sem limites. Ilitch teve outros dois irmãos. Ele morreu aos 45 anos de vida. Ivan era conhecido como o típico funcionário padrão: pontual e infalível como um relógio.


A obra é dividida em doze partes e 79 páginas de leitura da alma humana. A obra é um manual de Tolstói de, como não levar ou conduzir sua vida, caso você não queira se arrepender amargamente de seus erros no seu leito de morte (tal como o personagem principal de nossa obra aqui citada). É também uma crítica filosófica a este estilo de vida burguês que é falso, moralista, superficial, morto, desumano, deprimente. O livro se inicia já com a morte do protagonista, Ivan Ilitch. Logo de início, Tolstói dá indícios da hipocrisia dos personagens (ou seriam de todos nós?), como as preocupações de quem vai ganhar mais ou vai ocupar o cargo do falecido, entre outras mesquinharias. Da esposa, também não se espera solidariedade ou respeito ao morto, pois, provavelmente teve uma vida sem amor, sem romance, sem cuidados e carinhos. Logo após a morte de Ivan (seu marido), ela indaga ao chefe do mesmo, Ivanovitch, se sabe de quaisquer verbas que por ventura poderia se utilizar na ausência do marido, funcionário público do poder judiciário russo. Dinheiro… é sempre dinheiro… Nada que preocupe os fiéis amigos do defunto que se apressam para mais uma partida de seus jogos de cartas.


Ivan não se casou por amar sua noiva. Mas por conveniência de que seria um bom negócio e isso o faria estar na posição que as pessoas e a sociedade imaginavam ou esperavam dele. Assim também teve filhos, imaginando que seria positivo tal olhar da sociedade sobre sua pessoa e família. Porém, a medida que o tempo passava, sua esposa percebe o buraco em que se enfiou e, começa a se tornar mais irritadiça. O que faz com que Ivan se isole no mundo de seu trabalho e de seus jogos de cartas. Assim também foi com os filhos. Quanto mais filhos, mais se refugiava no trabalho e mais raivosa se tornava sua esposa. Foi constituído um casamento sem amor e com obrigações sem sentido algum para a vida.


Uma família sem compromisso, de aparências, filhos gerados sem planos para os mesmos, fuga de responsabilidade dos pais para com os filhos e para com o relacionamento, egoísmo absurdo do pai para com todos (as). O trabalho era a válvula de escape do Sr. Ivan. Válvula que nem ao menos ele gostava de realizar. Fica a pergunta: além do jogo, do que ele realmente gostava em viver? Aparentemente nada!


Ivan sempre se gabava da capacidade que tinha de separar as relações do trabalho para com a vida pessoal. Jamais deixava as coisas se misturarem. Ao longo de sua vida, construiu relações frias, distantes, falsas, vazias com as pessoas. Foi desumano consigo e com as pessoas nas relações que criou. A dúvida que fica é: será que algum dia Ivan amou ou foi amado? A família abandonou os verdadeiros amigos para se relacionarem com a “nata” da sociedade… os ricos e suas relações superficiais. As verdadeiras alegrias de Ivan se resumiam ao seu jogo e ao mínimo contato e aborrecimento com a família.


Por volta de 17 anos depois do casamento, Ivan começa a sentir fortes dores no lado esquerdo do corpo. Vai ao médico e descobre que possui um problema de saúde, provavelmente no rim. Durante a consulta, percebe que o médico o trata do mesmo modo frio, distante, falso, desumano, que tratava as pessoas no tribunal. Sai de lá sem ter a menor ideia do que o médico o disse e diagnosticou. E percebe que é a mesma forma com que trata os cidadãos que precisam da justiça e a ele recorre: sai completamente sem saber o que fazer e se tem chances de sobreviver diante do distanciamento do médico (cientista) e de seu paciente (ele, o ignorante desconhecedor daquela Ciência). O distanciamento do próprio Ivan ao público como advogado e funcionário da justiça, é a mesma injustiça que ele, como paciente, sofreu com a consulta ao médico. Mas a alienação de Ivan é tamanha, que ele é incapaz de fazer uma relação entre as atitudes do médico e as dele e com a alienada conduta de sua vida. Tolstói também está fazendo uma crítica a frieza das Ciências naqueles meados dos XIX, antes mesmo de Adorno e os Frankfurtianos. É indiretamente uma crítica ao Positivismo que no século XX, ajudaria no desenvolvimento e suporte de um meio de se pensar onde natureza existe para nos servir, que a Ciência tem a palavra final sobre todas as formas de vida e que era natural a seleção da “natureza” de que, só os mais fracos sobreviveriam. Tais ideais também foram responsáveis pelo surgimento do nazi fascismo, da coisificação do homem, da natureza, entre outros males.

Ivan também percebe que, depois de tanto tempo sendo egoísta, envenenou sua vida e a de tantas outras pessoas. Percebe que está sozinho no mundo, por mais que esteja cercado de pessoas a todo instante e em todos os lugares. Ele percebe que estragou sua vida e que agora é tarde demais para concertá-la. Ao término da quinta parte da obra, percebe-se o comportamento de Ivan ao renegar a consulta com um médico, simplesmente por que era um preço caro. Ou seja, para ele, mesmo na hora da proximidade da morte, o que vale são os bens materiais e não a própria vida.


Percebe-se também uma perda profunda da empatia na personalidade de Ivan. Sua postura de que a morte nunca poderia acontecer consigo, de que ela nunca chegaria, é reflexo de seu egoísmo e de sua atitude de se achar diferente, especial, acima dos demais mortais, o que o faz pensar ser uma pessoa especial, de que a morte nunca irá alcançá-lo. Uma hora chega para todos nós. A morte está aí para mostrar que pode chegar mais cedo para alguns do que para outros. Principalmente para aqueles que se pretendem super homens.


Mais adiante, se entende que o Sr. Ivan era uma pessoa extremamente carente. Queria apenas que as pessoas tivessem dó dele, como se fosse uma criança doente. “Desejava ser acariciado, beijado e pranteado do jeito que acariciam e tranquilizam as crianças.” Ou seja, provavelmente, nunca havia recebido amor de nenhuma pessoa, seja do pai ou da mãe, por isso de seu egoísmo e indiferença para com os membros de sua família e as pessoas em seu trabalho também. É como se Ilitch vivesse em um mundo a parte, em um transe hipnótico que o impedisse de ver que ele vivia em sociedade e precisava das pessoas para sobreviver, para ajudar e um dia ser ajudado. Tal egoísmo e distanciamento das pessoas, ou frieza, ficava claro no relacionamento com todos a sua volta. Essa vida de falsidade e mentira envenena qualquer um.


Nas visitas comuns do médico a sua pessoa, já deitado em seu leito, Ivan observava o jeito, as técnicas, as artimanhas do doutor em “analisar” o paciente. “Ivan Ilitch submete-se a isso como acontecia de se submeter aos discursos dos advogados quando sabiam que estavam sempre mentindo, e por que motivo.” Ainda sobre o doutor, “Ele ficou em silêncio e franziu o cenho. Sentia que a mentira que o rodeava era tão embrulhada que ficara difícil discernir qualquer coisa.” Isso tudo demonstra aquela vida de aparências, superficial, descolada da realidade, ideológica, embasada na indústria cultural, repleta de mentiras, cinismo, falsidades, no trabalho, casamento, etc…


Num de seus momentos de tristeza, ele se pegava chorando e indagando a si mesmo sobre o imenso desamparo, a terrível solidão, a crueldade das pessoas, a ausência das pessoas e de deus… mas era incapaz de entender que tudo aquilo era reflexo da forma como ele tratava o outro. Numa de suas reflexões pessoais e indagações…


“-Viver? Viver como?

-Sim, viver como eu vivia antes: de um jeito bom, agradável.

-Como você vivia antes, de um jeito bom e agradável? […] Lá, na infância, houvera algo realmente agradável, que valeria a pena viver, se regressasse.”


Pouco depois: “Aquele trabalho morto, aquelas preocupações com dinheiro, e assim um ano, dois, dez, doze, e tudo sempre igual. E quanto mais avançava, mais morto.” Ivan Ilitch já estava morto antes da chegada da hora. Só ele não percebeu que viveu uma vida morta, sem sentido, abjeta, superficial. Novamente em seus diálogos mentais ele se pergunta: “-O que você quer agora? Viver? Viver como? Viver como você vive no tribunal […] Para quê?” Essa vida sem sentido vale a pena ser vivida? Qual a razão de sua existência? Qual a justificativa para continuar a existir diante de tal desperdício?


Passadas algumas semanas de sua doença, depois que já não podia mais se levantar da cama sozinho, as lembranças da infância vinham se avolumando… uma após a outra. “Aqui também, quanto mais recuava, mais vida havia. Havia mais bondade na vida, e havia mais da própria vida. […] Assim como o tormento vai ficando cada vez pior, minha vida inteira foi ficando cada vez pior.” As lembranças da infância são as melhores, pois é o momento da descontração, da diversão, da alegria, sem os formalismos e vazios da vida de aparências de um adulto. Se todo adulto ainda guardasse um pouco da pureza e sinceridade das crianças, as pessoas e o mundo poderiam se melhores.


Pouco a frente, pensou no legado que deixou de si e de suas ações para seu trabalho, para o mundo e para seus filhos: “Seu trabalho, a organização de sua vida, sua família, os interesses da sociedade e do serviço, tudo isso podia ser impróprio. Tentou defender tudo aquilo perante si mesmo. E, de repente, sentiu toda debilidade do que defendia. Não havia nada a defender.” Percebeu que havia perdido sua vida e que não tinha feito nada de útil ou bom para si e para as pessoas ao seu redor. Uma vida indefensável, triste, sem frutos, perdida para sempre. As perguntas que faço são: Ivan é uma vítima de si mesmo? Ou é uma vítima da sociedade e seus péssimos hábitos, moral e costumes, que acabaram por interferir no seu jeito de ser consigo e com as outras pessoas? Ou é vilão de si mesmo e da sociedade? Ou serão ambos: vítima e vilão? Difícil responder, mas acredito que Ivan são as duas opções, vítima e vilão de si e da sociedade também.


Ao término da obra, percebe-se que Ivan chega ao seu leito e momento de morte e não entendeu o sentido da vida e da morte. Ele deseja mais vida, mais tempo, como o jogador de cartas que quer mais dinheiro para continuar apostando em mais uma partida, sem se contentar com os ganhos ou derrotas do jogo. Insaciável. Não tem hora para acabar. Não se contenta com nada. Sua existência é como um buraco negro: se não for impedido, suga a todos e tudo ao seu redor. Sua fome, sua carência, suas ânsias por questões materiais e sentimentais não tem fim. Sempre em eterno exagero. É como um sobrenome para ele: exagero. Aliás, este é um defeito que sua esposa o acusa de ter durante a obra. Mais tempo para uma existência perdida? Sem sentido, alienada, cheia de mentiras, cercada pela falsidade, pela “indústria cultural”. Ivan é um típico alienado de seus sentimentos, de si mesmo, não se conhece, não se entende, não se ama. Daí nos aparecem outras perguntas: como amar, conhecer, entender, sentir o (a) outro (a)? Será que algum dia, Ivan amou alguém ou a si mesmo? Uma vida não vivida vale a pena de se viver? Uma vida sem vida merece mais tempo?


Outra lição que acredito que o livro nos traga é: não seguir os hábitos, costumes, moral, cegamente, sem refletir sobre os mesmos. Nunca! Jamais faça isso. Não aceite o pensamento único de viver sob a forma e o modelo que a burguesia te impõe. Não aceite este modo de vida como o único. Existem outras formas de realizar sua existência não pré-definidos ou pré-determinados. Não aceite que lhe digam a verdade sem questionar do que se trata. Os Iluministas passaram séculos dizendo isso a todos nós e não devemos esquecer estas lições. Desobedeça! Pise fora da faixa! Regras existem para serem quebradas! Quem sabe o que te faz feliz é você mesmo e não as outras pessoas. Não leve a vida de modo tão sério, tão sisudo. A vida também é feita para brincar, se divertir. O contrário também é perigoso, mas os extremos de um ou outro também o são. Para finalizar minhas observações sobre a obra: ame ao próximo como a ti mesmo. Cuida de ti, mas do teu próximo também. Não se esqueça, se você planta vento, vai colher tempestade. Não há como escapar dessa regra da vida.








1* Resenha do Professor Fernando Monteiro. Formado em Ciências Sociais pela PUC-SP com Licenciatura e bacharelado e especialização e Mestrado em Filosofia.