domingo, 10 de abril de 2022

Pequena reflexão sobre "A metamorfose" de Kafka.

 

A metamorfose – Kafka


Como escrever algo simples e direto sobre a obra sem que alguém já não o tenha dito? Metamorfose representa os diversos dilemas e angústias que passam os homens na modernidade. Ao acordar e se ver transformado em um inseto gigante, provavelmente um besouro ou uma barata, o que podemos imaginar é que o autor a partir daquela data está se diferenciando dos demais homens de nossa sociedade. Sou diferente sim! E daí?!


Ao se notar diferente, ele trabalha com a narrativa na primeira pessoa durante toda a primeira parte da obra. Depois da segunda e durante a terceira parte, ele se abstêm e faz o discurso do narrador, mas em terceira pessoa. Como se ele mesmo tivesse se distanciado do monstro que se tornara ou não se enxergasse mais daquela forma. Por acaso começou a se ver inserido na vida comum dos homens do dia pra noite? Difícil.


Ao se retratar como inseto gigante que se tornara, Kafka poderia estar nos dizendo que não deseja mais esse tipo de vida cheio de burocracias, empecilhos para a felicidade ou carregado de coisas inúteis como a moral burguesa e o consumismo desenfreado como remédio aos males da alma. Ele também pode estar tentando nos dizer que por trás daquela aparência horrível, se esconde um ser frágil, com medo de todos e de tudo.


O autor também poderia estar se vitimizando diante da opressão do velho pai, da família e do capital diante do homem moderno, ao se transformar em inseto. Tornou-se algo patético e sem sentido (ou objetivo para a sociedade), enfim, um inseto! Talvez seja uma forma de mostrar aos homens que eles mesmos já se transformaram em algo, que não é mais o ser humano. Já não somos mais homens, mas monstros. Cada um de nós é monstro! Ou talvez sejamos pior do que monstros. Ou aliás, talvez sejamos pior do que a família de Gregor. Em certo modo, Kafka tenta infelizmente dizer a concepção contrária a que relatou a velha máxima de Chaplin: “Não sóis máquina, homem, é que sóis!”. Kafka nos diria o contrário ou o igual? “Não sóis inseto, homem, é que sóis!” ou, “Não sóis homem, inseto, é que sóis!”? Fica a grande dúvida.


Na primeira manhã, quando acorda e tem que lidar com o chefe imediato sobre seu atraso de dez minutos, mesmo sendo um funcionário exemplar, Kafka está nos dizendo da intromissão do patrão na vida do trabalhador (algo que naqueles tempos de jornadas de trabalho provavelmente poderiam alcançar as 12, 14 ou 16 horas diárias tranquilamente). Mas essa realidade, hoje, mais do que nunca, principalmente com a Internet, volta a se tornar ainda mais precária como antigamente. Esse desrespeito na vida do trabalhador é sinônimo de um mundo que desrespeita a todos os oprimidos a muitos séculos ou milênios.


Sua relação com a irmã é de amor e cuidados por parte de Gregor (o personagem que incorpora o autor), mas é de ódio também por parte da irmã que o vê como um grande fardo a ser carregado. Porém, antes da transformação de Gregor, todos o amavam e o tratavam bem na família pelo mesmo ser o responsável pelo sustento da mesma. A partir do momento em que ele perde o emprego, se torna um peso aos seus familiares como um vagabundo que pra nada presta e somente prejuízos a família causa. Esta passagem também nos remete a idéia da degeneração dos princípios de solidariedade e amor entre as pessoas. O que vale entre os homens é o que você possui e não seu caráter, atitude ou personalidade.


Outra passagem interessante na obra é o momento em que Gregor irá se alimentar. Dias antes da transformação, o autor irá dizer que o queijo que estava a disposição da família para ser degustado, estava em más condições. Depois de matamorfoseado, ao se deparar com uma série de alimentos trazidos pela irmã, o primeiro que ele escolhe é justamente aquele queijo que ele mesmo havia condenado como impróprio para consumo. Esta passagem nos lembra a canção “Metamorfose ambulante” de Raul Seixas. Ter a liberdade de ser você mesmo. De poder escolher uma coisa hoje e amanhã escolher completamente outra coisa. As vezes até contrariamente ao que se havia previamente escolhido. Esta liberdade de escolha ou o que conhecemos como livre-arbítrio, é sinônimo da liberdade subjetiva de cada ser humano que deve ser respeitada. Provavelmente a grande pergunta que Kafka gostaria de nos dizer é: Como respeitar o homem nesta sociedade de desrespeitos e injustiças? Ou como podemos ser respeitados nesta sociedade ou neste sistema?


Voltando ao queijo, ele aceitou o alimento estragado pois provavelmente já não se sentia digno de se alimentar de algo bom. A desumanização afeta até mesmo a vítima, fazendo a achar que não vale nada ou que não se deve desperdiçar bons alimentos com pessoas ruins. Ou seria de fato uma tentativa do autor mostrar que ele já não era mais humano, mas uma barata mesmo...


Sua morte ao término da obra, ao invés de causar espanto ou dor de seus parentes ou pais, causou um sentimento de alívio nos mesmos. O fato destes saírem em seguida para comemorarem o ocorrido, demonstra a frieza típica no comportamento dos indivíduos na atualidade. Nos lembra “Matou a família e foi ao cinema”.


Ao que parece, Kafka quer nos dar um alerta, ou um grito de desespero diante desta desumana situação. Ou revemos a atitude nossa de cada dia com os demais cidadãos de nossas sociedades (e isso implica mudanças radicais nos modos econômicos, políticos e culturais de vida – sem os quais não há respeito possível entre os homens), ou estaremos próximos da barbárie. Kafka fez uma leitura muito sensata de seu tempo e do nosso também antevendo fatos terríveis no futuro. Alguns anos após a publicação de sua obra e de sua morte, inicia-se a grande barbárie do século XX: a II Guerra e o Holocausto.